A Vida Invisível, de Karim Aïnouz


É muito interessante traçar um caminho da Retomada até aqui. Em 1995, o plano real já se mostrava um sucesso contra a hiperinflação e algumas medidas de bem-estar social começavam a ser implementadas. Um país com taxas de pobreza alarmantes ainda, é claro, mas era um suspiro de esperança depois de vinte um anos de ditadura seguidos por dez de completo caos econômico. Aí veio o governo Lula. No “País do Futuro”, reinava a esperança. Mas também um cuidado com o passado e a ideia de que ainda faltavam muitos avanços a serem feitos.

Nos anos 90, o cinema brasileiro, engajado como sua tradição o influencia, vinha de uma raiva contra os anos de censura política da ditadura e de censura prática com o fim da Embrafilme no governo Collor. Somado a isso, temos a cruz lançada sobre a América Latina que condiciona sua produção artística aos motivos sociais e ao realismo cru que denuncia. Afinal, os problemas são reais e fazer arte pela arte às vezes soa elitista ou alienante. Nessa leva, temos filmes incríveis e gigantes como Central do Brasil, do banqueiro Walter Salles, Cidade de Deus, do publicitário Fernando Meirelles e de Kátia Lund, os filmes de Cláudio Assis.

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Ficha Técnica
Título original e ano: A Vida Invisível, 2019. Direção: Karim Aïnouz.Roteiro: Murilo Hauser. Co-roteiro: Inés Bortagaray e Karim Aïnouz -Baseado na obra de Martha Batalha. Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Bárbara Santos, Flávia Gusmão, Antônio Fonseca, Flavio Bauraqui, Maria Manoella com participação especial de Fernanda Montenegro. Gênero: Melodrama. Nacionalidade: Brasil. Idioma: Português. Diretora Assistente: Nina Kopko. Direção de Fotografia: Hélène Louvart (AFC). Direção de Arte: Rodrigo Martirena. Figurino: Marina Franco. Maquiagem: Rosemary Paiva. Diretora de Produção: Silvia Sobral. Montagem: Heike Parplies (BFS). Montagem de som: Waldir Xavier. Som direto: Laura Zimmerman. Música Original: Benedikt Schiefer. Mixagem: Björn Wiese. Produtor: Rodrigo Teixeira. Co-produtores: Michael Weber e Viola Fügen. Empresas produtoras: RT Features, Pola Pandora, Sony Pictures, Canal Brasil e Naymar. Produtores Executivos: Camilo Cavalcanti, Mariana Coelho, Viviane Mendoça, Cécile Tollu-Polonowski, André Novis Produtor Associado: Michel Merkt. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 2h 25m.

Mas agora as coisas mudaram. No cinema e no Brasil. Quando o desespero toma conta, o refúgio apareceu justamente na ficção e na fantasia. Podemos notar isso ao constatar que 2019 foi o ano do cinema de gênero no Brasil. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um faroste com uma narrativa tão fora da casinha que nos convida à suspensão da descrença o tempo todo. Divino Amor, de Gabriel Mascaro, é uma ficção científica que imagina uma teocracia (algo interessante, uma vez que o gênero costuma apontar para a “isenção” da ciência). E ainda podemos citar os terrores de A Noite Amarela, de Ramon Porto Mota, e Morto Não Fala, de Dennilson Ramalho.

Aparece então 'A Vida Invisível', um melodrama que usa de todas as armas do gênero. 

Eurídice Gusmão e sua irmã Guida são inseparáveis, até que um homem as separa. Guida foge para a Grécia com um marinheiro que dizia, ou tentaria, porque só falava grego, cuidar dela, para terem um futuro juntos. Enquanto Eurídice, sozinha no meio da vida que esperam que leve no Brasil, tem apenas dois desejos, estudar piano em Viena e reencontrar sua irmã. A tentativa de se unirem novamente e a dor de estarem sozinhas num Rio de Janeiro cruel carregam toda a trama. 

Karim Aïnouz e Nina Kopko, diretora assistente, esticam a dor de um mundo que tenta subjugar essas mulheres. Nada é gratuito, porém (com exceção da cena no restaurante, talvez). Toda a opressão patriarcal que se dissipa em abandonos parentais, violência doméstica, estupro marital, bate forte no espectador porque todos na sala sabem que aquilo era o Brasil dos anos 50. Fica pior a cada momento quando vemos que é o Brasil entrando nos anos 2020. 


Nenhuma mulher chora durante o filme. Quando são levadas ao limite, a raiva toma conta e percebemos a força invisibilizada dessas personagens e das mulheres que conhecemos. A raiva muitas vezes é vista como um sentimento ruim, que precisa ser guardado para as sessões de terapia ou jogos do seu time, mas a verdade é que ela nos move quando muitas coisas não conseguiram. Eurídice tem um rosto delicado e uma voz branda, mas a interpretação de Carol Duarte deixa clara a raiva, às vezes ódio, que ela carrega até ao lavar as mãos de frente pro espelho. 

Os diretores, creditando Kopko como sendo também, mostram uma narrativa adaptada de um romance de modo espetacular. Justamente por ser uma adaptação, a história soa como ilustração de dores a partir dos acontecimentos que se sucedem. Às vezes surge o sentimento de que a narrativa não dá um escopo necessário para a grandeza dessas irmãs nem para o contexto de época, que soa como cenário. Mas então percebemos que a época é realmente um cenário, que as plantas tropicais e as cores que enchem a tela são belas, que a presença dessas mulheres na tela e tudo mais é um instrumento de gênero cinematográfico, o filme se faz claro.



O cinema, ao mostrar seus modos de fazer, mostra novas perspectivas sobre o mundo. Analisar o cinema a partir do gênero não é esquecer o mundo que está em volta do cinema (às vezes é, mas isso fica pra outro texto), é dar novas possibilidades de interpretá-lo. A Vida Invisível é um grande exemplo disso ao tratar de temas tão importantes e ser um filme lindo ao mesmo tempo.

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Marisa Arraes

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