terça-feira, 31 de outubro de 2023

Como Você se Atreve a Desejar Algo Tão Terrível, de Mania Akbari | 47ª Mostra SP


PERSPECTIVA INTERNACIONAL

“Isso não é cinema, era violação”! 

Demonstrando uma capacidade mui aplaudível de enfrentamento feminista, a cineasta iraniana Mania Akbari parte de um questionamento julgamental, no intertítulo de um filme mudo de seu país, para converter em investigação o (ab)uso da nudez feminina em produções realizadas antes da Revolução Islâmica de 1979. Enquanto tal, as diversas seqüências que compõem o documentário “Como Você se Atreve a Desejar Algo Tão Terrível” (2022) têm muito em comum com as pornochanchadas brasileiras setentistas, no que tange à estereotipização das “mulheres de vida fácil”. Mas logo o melodrama substituirá este espaço de exposição física mercantilizada, antes de as imagens de mulheres no cinema serem amplamente excluídas das telas, com a instituição da religião muçulmana enquanto parâmetro constitucional… 


Ao optar por um percurso ensaístico, em que interpela diretamente quem a assiste, a diretora mostra-se despida, logo no início, tatuando flores sob os seus seios. Na narração que atravessa toda a duração do filme (72 minutos), Mania Akbari fala por todas as mulheres iranianas, convertidas metonimicamente numa única entidade de reivindicação discursiva: “por que tu invades a minha solitude?”, pergunta ela, direcionando as suas inquietações para um espectador generalizado, fetichizado e obviamente masculino. E as imagens que ela exibe chocam pela licenciosidade! 


Para quem está acostumado aos filmes iranianos estetizados, a diretora apresenta situações quase pornográficas, de obras em que mulheres dançam de maneira sensualizada ou representam caricaturas adúlteras e/ou prostituídas. Nalguns dos trechos que ela resgata, em seu percuciente trabalho de montagem, personagens questionam o porquê de serem continuamente assediadas e/ou seduzidas, mas, como sói acontecer também no Ocidente, o direcionamento do olhar fílmico visa apenas ao prazer do público masculino heterossexual, de modo que elas quase sempre ficam seminuas. Tem-se aqui, portanto, um filme que problematiza veementemente a naturalização do ‘male gaze’… 


Créditos: Divulgação 47ª Mostra SP

O longa de Mania Akbari recebeu indicação na categoria de melhor filme no ''Black Movie Film Festival'' de 2022

Para quem não reconhece o nome, Mania Akbari é a protagonista do longa-metragem “Dez” (2002, de Abbas Kiarostami), envolto em uma polêmica tardia, por causa de questões envolvendo o tratamento concedido à sua filha transexual Amina Maher, que aparece no filme, ainda criança. É uma diretora amplamente envolvida com a militância de gênero e que recapitula a história cinematográfica de seu país de maneira deveras corajosa. Entretanto, o fato de ser um filme com enfoque crítico-subjetivo, e não necessariamente informativo, faz com que queiramos saber mais sobre aqueles filmes, nem que sejam enquanto contraexemplos: infelizmente, eles são listados apenas nos créditos finais, sem que consigamos identificar a quais títulos pertencem as cenas mostradas. 


Trailer Internacional



Ficha Técnica
Titulo original e ano: How Dare You Have Such a Rubbish Wish, 2022. Direção: Mania Akbari. Roteiro: Mania Akbari e Ehsan Khoshbakht. Gênero: Documentário. Nacionalidade: Irã, Canada e Reino Unido. Trilha Sonora Original: Mania Akbari. Design de Som: Mania Akbari. Fotografia: Mania Akbari, Mahshad Afshar, Karima Jamili e Hosein Shirzad. Edição: Mania Akbari. Screening Copy: Cryptofiction. Produção: Mania Behdad Esfahbod. Duração: 01h12min.

Ao término da sessão, constatamos que a cineasta transcende a lógica taxonômica, no que diz respeito à qualidade questionável de vários daqueles títulos. Para ela, foi terrível o que é definido como “privatização do farsi-cinema”, que não permitia sequer que as mulheres usando xador fossem filmadas, enquanto protagonistas de suas histórias de vida, comumente trágicas. “Seguiu-se um cinema poético, mas feito apenas por homens”, reclama, enquanto uma dançarina enceta alguns passos vigorosos, numa situação captada no presente. A reflexão nos é direcionada de maneira combatente, exigindo que nos posicionemos quanto ao que é comprovado como apagamento das pulsões femininas. Trata-se de um documentário irregular, mas que se revela como um ensaio combatente, justificando a necessidade de revisão e debate: pior que as más imagens seria nenhuma imagem? 

 

Vinheta da Mostra

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sábado, 28 de outubro de 2023

Los Colonos, de Felipe Gálvez Haberle | 47 ª Mostra SP


COMPETIÇÃO NOVOS DIRETORES| Mais Informações

Os olhos são as janelas da alma. Isso fica muito explícito nesta produção de uma hora e meia. Nos olhares dos atores vemos a desconfiança, o ódio, o medo, a desesperança, o racismo. E nesses cruzamentos de miradas, vai-se construindo uma história muito dolorosa sobre a construção dos países da América Latina.
O filme, primeiro longa-metragem do diretor Felipe Gálvez Haberle, se passa na Terra do Fogo, no Chile do século XIX. No extremo sul das Américas, é uma região ainda fortemente povoada pelos povos originários, os indígenas, que com suas aldeias atrapalham os planos do latifundiário Menéndez (Alfredo Castro), o rei das ovelhas do lugar, dono de uma terra maior que muitos países na região.
Em um território sem lei, assim como em um western norte-americano, Menéndez incumbe o seu capataz MacLennan (Mark Stanley) de encontrar uma rota segura para o transporte de seus ovinos até o Oceano Atlântico, numa estrada que sairá do Chile e chegará à Argentina. Para essa jornada, MacLennan irá acompanhado, por sua escolha, do mestiço indígena Moreno (Mariano Llinás) e, por imposição do patrão, do pistoleiro americano Bill (Benjamin Westfall). Estes homens que se odeiam começam sua cavalgada de vários dias numa Patagônia inóspita e bela, hostilizando-se mutuamente e espalhando muitas atrocidades à sua volta. Numa visão decolonialista da história sul-americana, a violência destes tempos é mostrada explicitamente, com assassinatos, estupros e muito sangue. Há sequências que são insuportáveis de tão cruéis - acontecimentos que para o espectador brasileiro não voa longe de sua realidade, pois o genocídio dos povos originários continua ocorrendo impunemente, sendo noticiada diariamente nos jornais da nossa bananaland.
Trailer


Ficha Técnica
Titulo Original e ano: Los Colonos, 2023. Direção: Felipe Gálvez Haberle. Roteiro: Felipe Gálvez Harbele e Antonia Girardi. Elenco: Camilo Arancibia, Mark Stanley, Benjamin Westfall, Alfredo Castro, Marcelo Alonso, Sam Spruell, Mariano Llinás. Gênero: Drama, História. Nacionalidade: Chile, Argentina, Reino Unido, Suécia, França, Dinamarca, Taiwan e Alemanha. Trilha Sonora Original: Harry Allouche. Departamento de SomTu Duu-Chih, Tu Tse Kang. Design de ProduçãoSebastián Orgambide. EdiçãoMatthieu Taponier. FotografiaSimone D’Arcangelo. Distribuição: Mubi. Classificação: 16 anos. Duração: 0137min.
A aventura dos três “heróis” acaba tragicamente. O filme dá um pulo no tempo e vê-se o outro lado. Em vez dos colonizadores brutos, o espectador agora assiste as negociações civilizadas entre o Menéndez e o político chileno Vicuña (Marcelo Alonso) para salvar a história da fundação do Chile. Afinal, lã manchada com sangue não vende. É necessário se maquiar o que ocorreu! Nestas sequências, os relatos dos crimes do MacLennan horrorizam pela crueldade.
Coletando depoimentos dos povos originários, Vicuña vai ao encontro do mestiço Moreno, agora um pescador que, acompanhado de sua esposa encontrada na antiga jornada, habita em uma cabana numa das ilhas da Terra do Fogo. Entre os relatos angustiantes dos crimes cometidos, Vicuña quer limpar a história com fotos deste casal originário, tomando chá calmamente na porta de casa.
                                 Créditos: Divulgação 47ª Mostra SP  
Indicado a mais de dez prêmios em Festivais ao redor do mundo e ganhador de sete deles.

Kiepja (Mishell Guaña), a esposa, faz uma das grandes cenas deste filme. Apenas com o olhar, demonstra todo o sofrimento, o ódio, o medo, a dignidade e a resiliência de todos os oprimidos desta América do Sul tão bela e tão sofrida. A cena dela sendo forçada a demonstrar tranquilidade, tomando educadamente o chá, é um dos frames mais sofridos que já assisti. Remete às fotos brasileiras das escravizadas africanas amas com as crianças brancas, quanto medo, ódio, dignidade e sofrimento em uma imagem!
Produção vencedora do Prêmio da Crítica da seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2023 que está disponível na programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Na certa um grande filme e uma obra que traz indignação.
Nota: 9/10.
Vinheta da Mostra

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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Five Nights At Freddy's - O Pesadelo Sem Fim | Assista Nos Cinemas



O sucesso do jogo ''Five Nights at Freddys'', criado por Scott Cawthon e lançado em agosto de 2014 nos Estados Unidos, foi tamanho a ponto da Warner Bros Pictures correr atrás de seu criador para adquirir os direitos antes mesmo da comemoração de um ano de lançamento da série, que é ambientada na pizzaria fictícia Freddy Fazbear's Pizza e tem personagens animatrônicos assustadores. Conversas e mais conversas tomaram o tempo de Scott - em um delas, Chris Columbus (Esqueceram de Mim e Harry Potter) seria o diretor da adaptação que contaria com seu criador no roteiro. Passada a euforia, lá em 2017, a potente produtora (em ascensão) Blumhouse Productions anunciou a tomada de posse do projeto e continuidade de todos os detalhes que o cercavam. Durante os anos, Cawthon jogou nas redes algumas curiosidades do roteiro que começava a tomar forma. Mas só em 2022, os atores Josh Hutcherson e Matthew Lillard entraram para o elenco e as filmagens se deram este ano. Hutcherson, ator desde criança, participou da trilogia Jogos Vorazes [2012-2014], do aclamado sessão da tarde ''ABC do Amor'' (2005) e entre outros. Já Lillard é conhecido por sua performance no clássico de terror/suspense ''Pânico'' [1996, de Wes Craven], onde vive um dos assassinos, e também por ter dado vida a Salsicha, o adorado amigo de Scooby Doo, no live action de 2002.

Se a série se completa por nove jogos ao total, o filme contempla apenas a sua primeira iniciativa que tem todo um clima anos 80 e 90. A ideia do game é que o jogador se torne guarda da pizzaria e vigie as câmeras no período noturno, pois ali os animatrônicos ganham vida e se tornam hostis. O primeiro conta com Mike como o vigia e em suas continuações os jogadores vão se modificando. A produção cinematográfica condiz com o que é apresentado no primeiro jogo e cria ainda camadas dramáticas para a jornada de Mike (Josh Hutcherson).

O longa tem uma cena inicial de apresentação da pizzaria onde um vigia é atacado e dali o arco de Mike se exibe. Ele é um jovem atormentado pelo rapto do irmão, o qual nunca esqueceu, e vive com a pequena irmã Abby (Piper Rubio). Sua tia Jane (Mary Stuart Masterson) está na cola do rapaz para tomar a guarda da menina, pois sabe que ela recebe pensão dos pais falecidos e mesmo não tendo nenhum vínculo afetivo com Abby persiste na ideia de que o irmão não é muito responsável para o trabalho. Ele vive pulando de emprego em emprego, pois ainda precisa tratar seus traumas do passado e ao ir visitar um conselheiro  (Matthew Lillard)  para vagas de trabalho é oferecido a oportunidade de vigia da Freddy Fazbear's Pizza. O lugar não está aberto e seu dono apenas não quer que ninguém entre por lá e mexa nos robôs Freddy Fazbear, Bonnie, Chica, Foxy e etc  que ainda estão no lugar. A policial Vanessa (Elizabeth Lail) vive passando por ali e se certificando que está tudo ok. A moça aparenta saber mais sobre a pizzaria do que o novo funcionário e ele está tão ligado ao seu passado que não percebe o perigo que está correndo. Aliás, os robôs ganham vida, mas a principio não tentam fazer nada à ele. Isto porquê em uma das noites ele leva a irmã para o trabalho e os robôs fantasmagóricos a adoram. Abby é uma menina que se comunica através de seus desenhos, assim como quase toda criança, e diz conversar com fantasmas inúmeras vezes ao irmão, porém ele a desacredita. Certa noite, logo após Mike ir embora, uma turma de vândalos, contratada pela tia do rapaz, chega ao espaço para tentar destruir tudo e o prejudicar, porém os planos dela não dão muito certo. Ainda assim, Mike vai ficando cada vez mais assustado com a potência que o lugar tem de o aproximar do pesadelo que foi o rapto de seu irmão e só quando sua vida e a de Abby estão necessariamente em risco ele entende que precisa de ajuda.

Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Five Nights At Freddy's, 2023. Direção: Emma Tammi. Roteiro: Scott Cawthon, Seth Cuddeback e Emma Tammi - com argumentos de tela de Chris Lee Hill e Tyler MacIntyre. Obra baseada na série de jogos '' Five Nights at Freddy's '' de Scott Cawthon. Elenco: Josh Hutcherson, Piper Rubio, Elizabeth Lail, Matthew Lillard, Mary Stuart Masterson, Kat Conner Sterling, David Lind, Christian Stokes, Joseph Poliquin, Grant Feely, Asher Colton Spence, David Huston Doty, Liam Hendrix, Jophielle Love. Gênero: Suspense. Nacionalidade: EUA. Trilha Sonora Original: The Newton Brothers. Fotografia: Lyn Moncrief. Edição: William Paley e Andrew Wesman. Design de Produção: Marc Fisichella. Direção de Arte: Mark A. Terry. Distribuição: Universal Pictures Brasil. Duração:  01h50min.
A película cria um ótimo suspense e entrega detalhes que serão reconhecidos para quem os jogos são familiares e é uma boa surpresa para quem sequer nunca ouviu falar da série. Embarca o espectador em uma hora e cinquenta de nervosismo pela vida dos personagens e consegue prender a atenção muito bem ao recriar o mundo pensado por Scott Cawthon. 

Como primeira adaptação de game da Blumhouse, a produção foi levada muito a sério pela produtora. Jason Blumhouse, inclusive, garantiu que o filme era umas das prioridades na lista de lançamentos e, desde então, conseguiu fechar no elenco ótimos atores e ter uma diretora que tem chamado a atenção. Josh Hutcherson não fez necessariamente nada grande após Jogos Vorazes e Matthew Lillard retorna a um lugar que o deixou conhecido com muito frescor, a vilania. O roteiro tem explicações para alguns dos ''mistérios'' envolvendo os personagens e outros não - o que não é necessariamente prejudicial ao filme, mas que para o cinéfilo mais ''chatinho'', pode soar implausível. Temos personagens ''duas caras'', familiares sem noção, revelações que podem ou não surpreender, mas que garantem um bom entretenimento e muitas mortes chocantes. 

                                                                                Créditos: © 2023 Universal Studios. All Rights Reserved.
O criador da série já indicou que o sucesso do filme ocasionará em uma trilogia e o ator Matthew Lillard afirmou que o studio o quer nos três filmes. 

O filme não conta com CGI, mas com animatrônicos reais criados pela ''Jim Henson's Creature Shop''. Logo, quando alguns deles não exatamente conseguiam realizar a performance necessária, um dublÊ vestia a roupa do boneco e concretizava a ação idealizada pelo projeto.

Não há voz para os robôs, porém, em alguns momentos sons são liberados enquanto um deles, Foxy, está aterrorizando a noite. No mais, eles fingem performar canções em lip sync para os visitantes, o que também não deixa de ser assustador.

                                                                                      Créditos: © 2023 Universal Studios. All Rights Reserved.
Emma Tammi é a terceira diretora mulher a conduzir uma película baseada em jogos, antes dela, Annabel Jankel dirigiu Super Mario Bros (1993) e M.J. Bassett o terror ''Silent Hill - Revelação (2012).

Emma Tammi surgiu no cenário em 2014 com o documentário ''Fair Chase'' que aborda teorias sobre o hábito de correr. Já fez filmes para tevê, uma série de terror e também dirigiu um podcast. Com ''The Wind'' (2018), ganhou inúmeras premiações de festivais de terror e da crítica e deve em breve dirigir ''The Dollhouse'', terror que deve ganhar as telas no próximo ano. Com FNAF, chega a um público maior do que pode imaginar e com solidez, mediante um trabalho criativo e cheio de boas ferramentas para o entretenimento dos aficionados por suspense.

Ótima pedida para o fim do mês e para a comemoração do Halloween.

Avaliação: Três fantasmas marotos (3/5)


EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS

Hypnotic - A Ameaça Invisível, de Robert Rodriguez | Assista nos Cinemas


Este texto contêm spoilers

O roteiro inicial do thriller cheio de ação e mistério Hypnotic - A Ameaça Invisível ganhou seu primeiro rascunho em 2002 pelas mãos de seu diretor, Robert Rodriguez (Sin City, Spy Kids). Assim, quando a produção saiu do papel, os argumentos de Rodriguez foram reescritos por Max Borenstein. A película faz o que ela se propõe a fazer nos seus 94 minutos de duração, trazer questionamentos ao espectador. O primeiro deles é o mais óbvio, se o filme pode ou não surpreender, afinal, com uma proposta que não é assim tão original e que brinca em território já desbravado, ela não exatamente aprofunda nada. As relações dos personagens são confusas, o que pode se misturar ao conceito do filme, pois a narrativa traz alteração da realidade nos acontecimentos e a temática acaba perdendo o brilho que poderia apresentar.

No entanto, o trabalho de Ben Affleck (A garota exemplar) como o detetive Daniel Rourke vem acentuado e condizente, o que pode ser visto como um ponto positivo ao longa. No filme, Affleck vive um homem que luta para esconder suas verdadeiras emoções, sentimentos e intenções - o que é ótimo, porque ele não é tão sagaz em demonstrar vulnerabilidade. Portanto, interpretar um cara torturado por ter perdido um familiar e que busca em seu trabalho se distrair das memórias, enquanto busca justiça, é mais do que esperado que ele não saia do roteiro. 

Na trama, somos introduzidos ao personagem de Affleck numa sessão de terapia. No lugar, o homem participa de um procedimento de hipnose de forma sutil. Rourke está visivelmente distraído, preso em uma memória que vai encaminhar quem assiste aos acontecimentos que o levaram até ali. Enquanto isso, a terapeuta parece fazer gestos calculados - que passam despercebidos a todos - com a caneta. Ela o pede que descreva a memória que o está incomodando. Rourke então detalha como estava feliz, no parque com sua filha, e que ao se distrair momentaneamente, a garota sumiu. O que acontece é que a menina fora raptada nesse dia, e o suspeito negou saber o paradeiro dela, ou como se envolveu nessa história. O caso ficou nacionalmente conhecido, e a vida desse pai nunca mais foi a mesma. Tendo sua rotina dividida entre o trabalho e as rápidas sessões que o auxiliam a superar as memórias que o atormentam.

                                                                                            Créditos: Diamond Films Br/Divulgação
Assim como em diversos projetos de Rodriguez, seus familiares, desta vez os filhos, Rebel (trilha sonora), Rhiannon (storyboards), Racer Max (produtor) e Sid (efeitos especiais) estão na equipe do filme.

Mas nem tudo é o que parece. E o caso ocorrido em sua vida ganha outras proporções quando uma perseguição pessoal se dá em seu trabalho, onde quase nada é o que parece ser. Uma denúncia anônima acaba o levando a encontrar a foto de sua filha num cofre que foi roubado, com o nome Dellrayne, que seria um homem misterioso, interpretado por William Fichtner (Armagedom e Watchmen). Fichtner com toda a sua vasta experiência profissional, consegue segurar sua atuação, por menor que ela seja, e principalmente, por mais caricato que o personagem venha a ser.

Ao rastrear a ligação anônima, Rourke acaba chegando a uma mulher chamada Diana Cruz, que é vivida por Alice Braga (Eduardo e Mônica, Soul, Cidade de Deus), e ela revela à ele, que Dellrayne e ela são hipnóticos, pessoas que controlam a realidade a partir de um treinamento realizado por um programa do governo - A Divisão. E assim, Rourke segue com Diana, atrás de entender o que Dellrayne tem a ver com o sumiço de sua filha.

O filme conta com três atos, um no qual Daniel Rourke está lidando com o que restou da vida dele, o segundo no qual Diana o leva em uma jornada de perseguição do maior hipnótico que já existiu, Dellayne. E a terceira, onde tudo o que foi visto até agora não era real.
                                                                                       
                                                                                            Créditos: Diamond Films Br/Divulgação
Ben Affleck e William Fichtner voltam a trabalhar juntos depois de 25 anos. Os dois se encontraram em cena pela primeira vez em Armageddom (1998).

É interessante ver que tentaram juntar Alice e Ben como um casal no meio de todos esses atos e perseguições, e quebras de expectativa de realidade na história. Entretanto, apesar da atuação sempre impecável de Alice, os dois não têm química juntos. O que não seria um problema, já que, fora a descoberta de que os dois são casados, só existe uma cena de fato de uma aproximação mais romântica e sensual entre a dupla. E é a cena que nos leva ao terceiro ato onde descobrimos que Daniel Rourke escondeu a filha, inclusive de si mesmo, enganando e reiniciando a sua mente, quando fazia parte da Divisão.

Em certo momento da jornada, o espectador poderá se perguntar se a linha tênue entre o que é real e o que não é pode ser quebrada não só para Rourke, mas para quem assiste o filme. E apesar de porcamente executado, isso acontece, a audiência se vê dentro de uma realidade onde nada do que foi visto de fato aconteceu. E que pouco sabemos sobre a história contada por Diana Cruz, e o ponto de vista de Daniel Rourke.

O filme não tem tanto fôlego para os atos finais, e mesmo entretendo, não é crível na execução de Daniel como um grande hipnótico, que escondeu a filha do programa, por ela ter uma habilidade natural poderosíssima. O grande final, que funciona quase como um quarto ato, é uma bagunça, e a sensação era de que o diretor queria voltar para uma continuação. A impressão é que vem à memória incontáveis filmes que brincaram com a ideia de manipular a realidade e a verdade através da memória de alguém, e conseguiram chegar ao objetivo satisfatoriamente, melhor do que este. Filmes como A Origem (2010) de Christopher Nolan, e até mesmo, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, vêm à mente.

Trailer


Ficha Técnica
Título original e ano: Hypnotic, 2023. Direção: Robert Rodriguez. Roteiro: Max Borenstein. Elenco: Robert Rodriguez, Alice Braga,  Jd Pardo, Jeff Fazhey , Dayo Okeniyi, Jackie Earle Haley, Zane Holtz, William Fitchtner, Ruben Javier Caballero. Gênero: Ação, Mistério, Thriller. Nacionalidade: EUA. Trilha Sonora Original: Rebel Rodriguez. Edição: Robert Rodriguez. FotografiaPablo Berron e Robert Rodriguez. Direção de Arte: Paul Alix. Design de ProduçãoCaylah Eddleblute e Steve Joyner. Efeitos Especiais: Sid Rodriguez. Produção: Racer Max, Guy Botham e Robert Rodriguez. Distribuição: Diamond Films Br. Duração: 01h33min.
EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorcese

 
No último ano um dos melhores filmes nacionais lançados em Festivais Brasileiros retratava o povo indígena Korubos na região amazônica e o trabalho da FUNAI para fazer acontecer o reencontro da tribo que estava separada. ''A Invenção do Outro'', documentário de Bruno Jorge, emocionou a todos pela humanidade que apresentou, além de homenagear o falecido indigenista Bruno Pereira. Neste ano, o aguardado novo longa-metragem do cineasta Martin Scorcese, ''Assassinos da Lua das Flores'', adaptação do livro de David Grann (veja aqui), também vem retratar um povo indígena que sofreu com a constante perseguição do homem branco no continente norte-americano. 

A trama revela como, na virada do século XX, foi descoberto no território da nação Osage uma poço petrolífero que deixou a todos ricos, ou até milionários. A notícia correu e o lugar começou a receber pessoas que não eram da tribo para trabalhar e fazer a roda da economia girar por ali. Com estas pessoas, vieram a ganância e a ambição e muitos dos nativos acabaram mortos tragicamente por aqueles que foram àquelas terras de olho no poder econômico que o petróleo trouxe. A família Burkhart, formada pela matriarca Lizzie Q (Tantoo Cardinal) e suas filhas Mollie (Lilly Gladstone), Anna (Cara Jade Myers), Minnie (Jillian Dion) e Reta (Janae Collins) foi uma das primeiras a ser massacradas quase que inteiramente, mas um pedido de Mollie à autoridades governamentais e também aos organismos indígenas fez com que uma das primeiras investigações do FBI entrasse em cena e perfurasse a nuvem nebulosa que cercava as mortes destas mulheres.

O filme, em suas três horas e vinte e seis minutos de duração, dá ao espectador a chance de entrar em contato com ''a perspectiva do homem branco sobre ele mesmo''. O roteiro traz o idioma Osage em inúmeras falas, a tradução brasileira aparece vez ou outra nestas partes, e em sua maioria a língua inglesa é dominante. Há um cuidado enorme da direção em criticar a ação realizada por Willliam Hale, personagem de Robert De Niro, ao cooptar o sobrinho Ernest, vivido por Leonardo DiCaprio de forma voraz, para se casar com Mollie e assim planejarem a morte de todas as outras mulheres da família para que toda a sua herança chegue as mãos de Hale - um dito amigo da comunidade indígena e que reside no lugar há muito tempo. 

                                                                                 Créditos: Paramount Pictures / Apple Studios / Divulgação
Na primeira imagem, o retrato histórico das irmãs Burkhart. Na segunda, as atrizes que as interpretaram, Jillian Dion, Lilly Gladstone, Cara Jade Myers e Janae Collins.

O longa tem palco em 1920 e se inicia com um ritual de passagem, um funeral. Ali o xamã da tribo evoca a espiritualidade  presente e conduz tudo na língua Osage. Enquanto isto, Ernest está voltando da guerra para casa do tio William. Henry (William Belleau), um nativo muito amigo de Hale vai a estação buscar o homem. O irmão do recém chegado, Byron (Scott Shepherd), também está vivendo com o tio e os dois se reveem. Ernest começa a trabalhar de taxista na região e vem a conhecer Molly Burkhart por acaso durante uma corrida. Seu tio William então menciona a moça para ele como um bilhete da loteria a ser conquistado e ele corre atrás de seu prêmio. Abençoado com uma cara bonita, o homem tem sorte e a mulher também flerta com ele, apesar de seus dentes mal cuidados. Não demora e os dois se casam e iniciam sua vida juntos. Contudo, as irmãs de Mollie vem ficando doentes e morrendo uma a uma sem explicação. A tribo então se reúne e decide enviar um representante para falar com autoridades fora dali para tentarem descobrir o que está acontecendo, pois mais irmãos nativos começam a morrer misteriosamente.

Uma das irmãs de Mollie, Anna (Cara Jade Myers), rebelde, farrista e alcoólatra vem visitar a mãe acamada certo dia e após ser levada para casa pelo irmão de Ernest, some. Dias depois é encontrada morta e a perícia local serra o corpo da vítima para tentar achar resíduos da bala, mas ''diz não encontrar nada''. Não bastasse a perda das irmãs de forma repentina e cruel, Mollie inicia um tratamento para a diabetes, com o auxilio de Willian e Ernest, e fica imensamente doente tempos depois da morte da mãe e de todas as irmãs. 

O caso só vira uma investigação oficial do FBI quando o texano Tom White (Jesse Plemmons) chega ao lugar e inicia uma caçada cautelosa atrás dos assassinos e cumplices.

                                                                                 Créditos: Paramount Pictures / Apple Studios / DivulgaçãoOs casos chegaram a ser retratados nos filmes ''Tragedies of Osage Hill'' (James Young Deer, 1926) e ''The FBI Story'' (Mervyn LeRoy, 1959).

O roteiro tem certa narração que explica com maestria o título do filme, a forma dos nativos de ver o mundo e a sua pureza fica ainda mais clara neste momento. Scorcese conduz os destinos trágicos dos personagens de forma compassada e com tempo para que todos tenham sua vez. A única e pequena problemática encontrada seja talvez a romantização na relação entre Ernest e Mollie. O personagem age conforme orientado pelo tio e continua até os atos finais tentando enganar a mulher, mas os fatos claros e na mesa conseguem dar à ela a certeza de que ali não mora afeto. Há momentos ótimos no filme que discutem ''a questão da pele'' dos índios'' e vemos o preconceito racial surgir sorrateiramente. 

Ao final da trama, vem os famosos detalhes da tragédia. O terceiro ato é perpetuado por cenas no tribunal e com a aparição dos atores Brendan Fraser e John Lithgow. Um como advogado do lado petrolífero interessado na liberdade de William Hale e o outro do governo. Ambos surgem para confundir a cabeça de Ernest e até conseguem em certo momento, mas a investigação de Tom White, personagem real da história da organização mais famosa do mundo, deu inúmeras provas ao tribunal para a condenação dos responsáveis. 

Trailer

Ficha Técnica 
Titulo Original e Ano: Killers of the Flower Moon, 2023. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Eric Roth, Martin Scorsese. Elenco: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Jesse Plemons, Lily Gladstone, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, JaNae Collins, Jillian Dion, William Belleau, Louis Cancelmi, Tatanka Means, Michael Abbot Jr., Pat Healy, Scott Shepard, Jason Isbell, Sturgill Simpson. Gênero: Drama. Nacionalidade: Eua. Produção: Martin Scorsese, Dan Friedkin, Bradley Thomas, Daniel Lupi. Produção Executiva: Leonardo DiCaprio, Rick Yorn, Adam Somner, Marianne Bower, Lisa Frechette, John Atwood, Shea Kammer, Niels Juul. Distribuição: Paramount Picturs Brasil. Duração: 03h2z6min.
Assassinos da Lua das Flores é um dos melhores trabalhos do diretor, e olha que nem é elogio falar isso, já que ele tem uma filmografia extensa com longas primorosos. Mas consegue abordar a temática sem soar calhorda ou racista. Pelo contrário, é afirmativo quanto aos crimes e seus culpados.

Avaliação: Cinco tiros fatais (5/5)

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