sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A Bela Vida, de Costas-Gravas


“É sempre melhor estar em casa, até mesmo para morrer”… 


Apesar de ser um contundente expositor de temas políticos em seus filmes – criticando regimes ditatoriais, por exemplo –, o cineasta grego Konstantinos Gavras, conhecido mundialmente apenas como Costa-Gavras, foi alvo de bastante controvérsia na década de 1970, entre os teóricos radicais de Cinema. Ismail Xavier, em seu livro “O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência”, explica que isso se deveu ao fato de este diretor levar a cabo um “cinema político baseado no maniqueísmo de heróis e vilões, com uma estrutura narrativa própria aos filmes de aventura hollywoodianos”. Dessa maneira, ao apresentar para o grande público a situação da violência militar em países da América Latina [no longa-metragem “Estado de Sítio” (1972)], entre outras situações espinhosas, ele erigiu uma carreira de sucesso, recebendo um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por “Z” (1969) e a Palma de Ouro no Festival de Cannes por “Missing – O Desaparecido, um Grande Mistério” (1982), entre tantos prêmios. 

Num artigo implacável contra ele, o então crítico Jean-Patrick Lebel [1942-2012] escreveu, ainda em meados da década de 1970, que ele “não será capaz (ou não terá vontade) de fazer outro tipo de cinema, além daquele que empresta ao cinema policial as suas formas principais e os seus efeitos mais grosseiros; provavelmente, o que ele gosta mesmo é de filmar uma ‘boa’ corrida de automóveis ou uma ‘boa’ cena movimentada”. E conclui, de maneira agressiva, “infelizmente, ele não tem consciência de que os recursos que a gente usa não são desprovidos de significação, e que compete à responsabilidade de qualquer cineasta, que queira dar aulinhas de política, começar por entender e assumir as conseqüências ideológicas e políticas dos signos de que se vale”. Um exagero, talvez?

Após alguns trabalhos sobre a crise financeira em seu país-natal, Costa-Gavras, com mais de noventa anos de idade, adapta “Le Dernier Souffle: Accompagner la fin de la vie” [em tradução literal, “O Último Suspiro: Acompanhar o Fim da Vida”], um livro recente do filósofo Regis Débray, escrito em parceria com o médico Claude Grange. É assim que surge “Uma Bela Vida” (2024) – cujo título original é o mesmo do livro –, sobre um filósofo que, ao descobrir algo preocupante durante um exame de ressonância magnética, passa a questionar as intenções da Medicina sob o Capitalismo, no que tange à manutenção de vidas moribundas, com vistas ao aumento de gastos.

Crédito de Imagens:Kg Producionts, Canal+, France Télévisions, Ciné+OCS, C8
INdicado ao prêmio "no Festival Internacional de San Sebastián

No início do filme – depois de uma superposição de ilustrações de Gustave Klimt, nos créditos de abertura –, conhecemos Fabrice Toussaint (Dénis Podalydés), um filósofo conhecido pela publicação de um livro polêmico, chamado “O Flagelo dos Idosos”, que, numa viagem aos EUA, submete-se ao exame supramencionado. De volta à França, ele resolve fazer uma nova bateria de exames, a fim de assegurar que a mancha cancerígena, anteriormente detectada, permanece adormecida. É quando ele e sua esposa Florence (Marilyne Canto) são apresentados ao Dr. Augustin  Masset (Kad Merad), médico que cuida de uma clínica destinada aos cuidados paliativos de pacientes terminais, que desejam passar os seus últimos dias de vida fazendo aquilo que realmente gostam e desejam, ao invés de serem submetidos a tratamentos dolorosos e vãos.


Uma amizade imediata é estabelecida entre Fabrice e Augustin, de modo que este segundo, ao explicar as diferenças fundamentais entre as medicinas Preventiva, Curativa e Paliativa, convence o primeiro ao visitar alguns pacientes e, assim, organizar o projeto de um novo livro, ao mesmo tempo em que uma edição de sua obra mais famosa é preparada, vinte anos depois, por ocasião de uma entrevista televisiva. Fabrice expõe as suas teses sob os impactos socioeconômicos do progressivo envelhecimento populacional, mas os responsáveis pelo programa apenas levam em consideração aquilo que pode assegurar maior audiência. Ou seja: as opiniões polêmicas do autor. Nos detalhes, tão recorrentemente mencionados nos diálogos, Costa-Gavras demonstra que segue afiado em suas observações de caráter político. 

Em muitos aspectos, este filme serve como um complemento ficcional do curta-metragem brasileiro “Cama Vazia” (2023, de Fábio Rogério & Jean-Claude Bernardet), no que diz respeito à abordagem sobre a objetificação dos doentes e sobre a mercantilização dos procedimentos curativos e paliativos. É neste momento que percebemos algumas contradições discursivas no roteiro, ao abordar de maneira condescendente as condições luxuosas da clínica do Dr. Augustin e ao fazer com que quase todos os personagens reconheçam o filósofo, de modo que eles admitem ter lido os seus livros de maneira tão corriqueira quanto entusiasmada. Tanto os médicos quanto os pacientes revelam-se intelectualmente eruditos, a ponto de Fabrice entabular um diálogo espontâneo, sobre os paraísos idealizados pela cultura grega ancestral, com uma moribunda sorridente, que estabelece o horário em que ela própria morrerá. Noutro instante, Florence estabelece como prioritária uma festa para seus netos, e fica chocada ao flagrá-los assistindo a um vídeo pornô no porão. Os valores morais dos protagonistas são obviamente associados à elite parisiense, portanto.

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: Le dernier souffle, 2024. Roteiro e Direção: Costa-Gavras. Elenco: Charlotte Rampling, Hiam Abbass, Ángela Molina, Karin Viard, Kad Merad, Denis Podalydès, Agathe Bonitzer, Marilyne Canto, Namory Bakayoko, Jade Phan-Gia, Virginie Sibalo, Maria McClurg. Nacionalidade: França. Gênero: Drama. Música: Armand Amar. Fotografia: Nathalie Durand. Edição: Costa-Gavras , Loanne Trevisan. Design de Produção: Catherine Werner Schmit. Produtores: Costa-Gavras, Alexandre Gavras, Michèle Ray, Michèle Ray-Gavras. ProdutorasKg Producionts, Canal+, France Télévisions, Ciné+OCS, C8. Distribuidora: Filmes do Estação. Duração: 100 min.

Em termos formais, o filme parece uma versão mais comportada e expandida de “As Invasões Bárbaras” (2003, de Denys Arcand), atravessado por ‘flashbacks’ que soam inconvenientes e/ou preguiçosos, ainda que ao menos um mereça destaque positivo: aquele no qual a paciente vivida pela imponente Charlotte Rampling pede ao Dr. Augustin que ele ajude-a a não prolongar o seu sofrimento. Mais à frente, numa seqüência que se instaura como clímax emocional da obra, uma cigana idosa, de nome Estrella (Ángela Molina, esplêndida), hospeda-se na clínica do Dr. Augustin por algumas horas, acompanhada de seu marido (Georges Corraface) e de toda a sua trupe, incitando os seus parentes a entoarem uma cantiga sobre caracóis que comparecem ao enterro de uma folha morta, depois que ela própria foi bem-sucedida ao adquirir procedimentos que lhe garantirão um suicídio assistido, com vistas ao fim das dores atrozes advindas de seu câncer. Por mais que se saiba que os personagens são baseados em correspondentes reais, ainda vivos, fica evidente que a escolha do diretor por adaptar este enredo, a partir do livro que lhe serviu de base, possui intenções testamentais, não sendo por acaso que seus parentes (entre eles, os filhos Romain Gavras e Julie Gavras, ambos cineastas) compareçam em breves participações, como pessoas vinculadas aos pacientes prestes a aceitarem o falecimento. Caso este seja o derradeiro trabalho cimatográfico do nonagenário diretor, ele foi exitoso ao justificar o título brasileiro da obra. Mas voltamos à contradição: isto só é possível para quem pode pagar!

A produção estreou em meados de julho e segue em cartaz em cinemas seletos.

EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pode falar. Nós retribuímos os comentários e respondemos qualquer dúvida. :)