terça-feira, 26 de agosto de 2025

O Último Azul, de Gabriel Mascaro


PREMISSA REFRESCANTE

Ao completarem 75 anos de idade o governo brasileiro recolhe compulsoriamente todos os idosos e os enviam para casas de repouso conhecidas como "colônias" afim de que possam desfrutar de seus últimos anos de vida sob a tutela do Estado e dar aos parentes a tranquilidade necessária para seguir suas vidas e continuar trabalhando e produzindo. Essa é a premissa central do novo filme de Gabriel Mascaro, "O Último Azul". O longa nacional encantou a plateia e levou para casa o Leão de Prata e o Prêmio do Júri no Festival de Berlim. A película também está cotada para representar o Brasil no Oscar, pois já figura na lista prévia dos indicados a serem votados pela comitiva brasileira.

DA DISTOPIA AO MUNDO REAL

Uma distopia é uma história fictícia que se passa em um futuro próximo e que extrapola alguns elementos a fim de discutir problemáticas do presente. O roteiro assinado por Mascaro, em parceria com Tibério Azul, trata de um problema sério e urgente do mundo real: o envelhecimento acelerado da população. A medida em que a medicina avançou e doenças até então consideradas incuráveis começaram a ser tratadas, aliado a uma melhoria na qualidade de vida, a expectativa de vida da população mundial aumentou. Combinado a uma queda na taxa de natalidade devido ao acesso à educação, informação e aos meios contraceptivos, o mundo contemporâneo está assistindo a um envelhecimento sem precedentes da população e o início de crises nas previdências públicas.

Em 2022, o governo brasileiro divulgou os resultados do CENSO e foi constatado que, mesmo sem ter passado pelo processo de industrialização, a pirâmide demográfica do Brasil está se alterando. As pessoas idosas foram de 10,8% do total da população em 2010 para 15,6% do total em 2022, um aumento de 56% em pouco mais de uma década. Muito se discute sobre a crise na previdência ou sobre a queda no número de nascimentos e os efeitos que esses fatos podem gerar. Como exemplo de mundo distópico que trata desse tema, temos o livro que virou fenômeno, "O Conto da Aia, de Margareth Atwood", que retrata uma sociedade onde as pessoas estão estéreis e os nascimentos se tornam cada vez mais raros. Olhando para o outro lado da moeda, o filme de Mascaro, por sua vez, busca discutir os desafios de ser uma pessoa idosa em um mundo obcecado pela produtividade.

VIAJAR DE AVIÃO

Tereza, vivida aqui magistralmente por Denise Weinberg, é um membro produtivo da sociedade: tem casa, emprego e independência. Mas tudo isso vira de cabeça para baixo quando é chegada a idade e com ela, o momento de se mudar para as colônias. Ela percebe que passou a vida inteira trabalhando para criar a filha e não teve a oportunidade de viver experiências diferentes, como, por exemplo, viajar de avião. Nesse mundo hipotético, a partir do momento que recebem o ultimato do governo, as pessoas idosas perdem todos os seus direitos. Elas passam a precisar de autorização para fazer praticamente qualquer coisa da vida civil e também são recolhidas por "viaturas cidadãs" em caso de descumprimento, para serem enviadas a força para essas casas de repouso. Carros que Tereza apelida de "cata velhos".

Decidida a não ir, ela embarca em uma viagem solo em busca de realizar o seu sonho de voar de avião. Como está sendo procurada pelas autoridades, ela precisa viajar por meios alternativos e por conta disso se vê em muitas situações inusitadas e, por consequência, acaba por viver experiências únicas. No barco que a leva até a cidade vizinha, conhece Cadu (papel de Rodrigo Santoro), homem cheio de desilusões amorosas e que a ensina sobre o caracol que solta uma gosma azul que, ao ser pingada nos olhos, revela o futuro. O uso do psicotrópico revela para ela outras faces de Cadu. Nesse sentido o filme se preocupa em desconstruir o conceito de masculinidade tradicional. Esse primeiro contato serve para construir em Tereza a possibilidade de experimentar o novo, o desconhecido.

Crédito de Imagens: Desvia Filmes, Viking Filmes, Quijote Cine, Cinevinay/ Vitrine Filmes/Divulgação
Rodado na Amazônia, o filme é uma coprodução entre o Brasil, México, Chile e Países Baixos.


Ao cruzar o caminho de Ludemir (Adanilo) uma reviravolta desagradável se apresenta e o sonho de voar é colocado em cheque por prioridades mais urgentes, mais profundas. Nesse ponto o roteiro toma a decisão inteligente de focar na jornada e não no destino. Durante o filme é possível ver outdoors e propagandas diversas sobre como ir para as colônias "é maravilhoso". É sempre uma peça de propaganda, um letreiro luminoso, uma promessa vazia.

Existe aqui uma discussão palpável sobre jornada. A sociedade de forma geral tende a pensar que uma pessoa idosa já viveu tudo que há para se viver e que eles deveriam descansar e não dar mais trabalho. Porém a verdade é que estamos sempre aprendendo. Não importa a idade, o novo sempre se revela, inclusive para os mais velhos. Existe esse pensamento limitante de que uma idade avançada representa o começo do fim de uma vida, entretanto nas cores vívidas e paisagens vibrantes em tela o que vemos é um exuberante recomeço. 

COMUNICAR SEM DIZER

A fotografia de Guilhermo Garza não esconde nada da pobreza de regiões ribeirinhas, deixando claro a dura realidade de um povo em suas casas de palafitas (casas de madeira construídas dentro da água). Todavia, a paisagem ao redor, os rios, as matas e as árvores na jornada de Tereza comunicam uma beleza natural pulsante entrelaçada em harmonia com as ocupações humanas. A paleta e o contraste de cores saturadas são um deleite para os olhos. De repente o que, em uma visão menos atenta, poderia ser considerado feio, passa a ganhar um tom exótico e quase lírico. Construir casas levando em consideração as cheias e secas é, antes de tudo, a harmonia do homem com o mundo.

Essas escolhas cuidadosas da direção de arte fazem praticamente uma analogia entre a velhice da personagem em contraste com a sua resiliência, resultado em um quadro belo de coragem e audácia. Alguns enquadramentos e modos de filmar foram claramente pensados para realçar essa visão de beleza exótica e dar profundidade ao filme para além do texto. Não é apenas o diálogo que comunica: todos os elementos trabalham em sincronia para criar uma experiência visual e sonora completa.

A trilha sonora original de Memo Guerra, por vezes puxada por vocais graves trás em notas o tom de denúncia e a sensação de impotência vivida por Tereza ao mesmo tempo que sincretiza a mística vivida por ela em determinadas situações que envolvem sorte (ou azar). Não se trata de uma jornada para conhecer o mundo, mas sim para conhecer a si mesma. 

O DESPERTAR

Nas idas e vindas pelos rios e cidades amazônicas Tereza conhece Roberta (Miriam Socarrás), uma estrangeira que mora em um barco chamado Caridad. Ela apresenta a Teresa um novo modo de enxergar a vida para além das colônias ou do conforto de uma casa. Munida por essa coragem, ela busca os meios para tentar ir além do que foi programado para ela. Existem então dois caminhos: seguir o que foi planejado ou apostar no peixe mais exótico, se arriscar e viver o extraordinário. É nesse ponto que filme brilha ainda mais do que parecia ser possível.

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: O Último Azul, 2025. Direção: Gabriel Mascaro. Roteiro: Gabriel Mascaro, Tibério Azul. Elenco: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Miriam Socarrás e Adanilo. Gênero: Drama, Distopia, Ficção Cientifica. Nacionalidade: Brasil, México, Países Baixos e Chiles. Trilha Sonora Original: Memo Guerra. Fotografia: Guillermo Garza AMC. Edição: Sebastían Sepúlveda, Omar Guzmán. Produção: Desvia (Brasil), Cinevinay (México). CoProdução: Globo Filmes (Brasil), Quijote Films (Chile), Viking Film (Países Baixos). Produtores: Rachel Daisy Ellis, Sandino Saravia Vinay. Coprodutores: Giancarlo Nasi, Marleen Slot. Financiamento: Ancine FSA, BRDE, SUAT, Funcultura, Fundarpe, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Banco do Brasil, EFICINE, Actinver, Focine/Foprocine, Fondo de Fomento Audiovisual, Ibermedia, Hubert Bals/ Netherlands Film Fund/ Fundo de coprodução Brasil-México. Markets/Pitching: Cinemart, IFC. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 01h25min.

Para além de discutir sobre abandono familiar e a forma como a pessoa idosa é tratada dentro da sociedade o enredo fala do poder da escolha. E de uma forma muito sensível. Tudo é filmado com muita delicadeza, todos os diálogos exalam simplicidade e sinceridade e as coisas não óbvias passam a carregar uma simbologia profunda que toma conta da narrativa no terço final. A fusão inebriante de texto, cores e sons do longa emulam o último azul de um caracol jogando luz ao nosso futuro inevitável e parece querer passar a mensagem de que no fim das contas a felicidade reside no trivial, no improvável. 

28 DE AGOSTO NOS CINEMAS

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