domingo, 19 de outubro de 2025

Queen Kelly, de Erich von Stroheim | 49ª Mostra SP


Filmes Restaurados

Apresentação Especial


O filme Queen Kelly é uma das notas de rodapé mais interessantes da história de Hollywood! Tem-se de tudo aqui: amor, sexo, traição, assassinato de carreiras e de um filme etc. Exageros à parte, o filme é uma obra-prima inacabada que tem os bastidores tão interessantes quanto a própria película. Tudo começa nos idos de 1928...

A maior estrela do cinema mudo, Gloria Swanson, a inesquecível Norma Desmond do clássico "Crepúsculo dos Deuses" (1950), do diretor Billy Wilder, tem em seu amante da época, Joseph P. Kennedy, o famoso patriarca da família Kennedy, pai dos irmãos presidente John Kennedy e senador Robert Kennedy, assassinados na conturbada década de 60 nos Estados Unidos e figuras históricas importantíssimas do século XX, seu principal incentivador. Esse democrata milionário resolve financiar para sua amada um longa-metragem para coroar a sua carreira com o melhor filme de todos os tempos e contrata um dos diretores de primeira linha daquela época: Erich von Stroheim, o genial realizador de "Esposas Ingênuas" (1922) e "Ouro e Maldição" (1924), um dos melhores filmes da história da sétima arte, e também o ator que fez o mordomo e ex-marido de Norma Desmond no longa-metragem de Wilder.

O que o Joseph Kennedy não sabia era que contratando o Stroheim estava adquirindo um pacote de genialidade, mas também de loucura financeira. Estava-se criando uma obra-prima, a olhos vistos, mas torrando-se dólares sem controle. O jeito foi o magnata dos negócios demitir o irascível diretor austríaco e contratar outro cineasta, Richard Boleslawski, para terminar a película. Esta então foi a última obra creditada ao Stroheim e selou o fim de sua carreira como diretor. Sua fama de esbanjador, genial e intransigente o precedia em todos seus possíveis contratos e afastava os financiadores. Para se tentar recuperar o investimento, o filme, com um final bem diferente do projeto original, montado exclusivamente por Boleslawski, foi lançado na Europa e na América do Sul em 1932.

Os amantes e pesquisadores do cinema, porém, nunca se contentaram com esse arremedo de obra. Juntando material perdido nas cinematecas de vários países, em um trabalho árduo e detalhista de recuperação, conseguiram montar algo mais próximo ao que Stroheim planejava, um melodrama deslumbrante e sensual de uma órfã que se torna dona de um bordel e depois rainha. Um roteiro tão magnífico que atravessa dois continentes, Europa e África, e que junta cenários luxuosos como um palácio real na Europa a um bordel na África, que cria personagens tão díspares quanto uma rainha louca, um príncipe, que de encantado não tem nada, e um velho com muletas pervertido, além de outros tão incríveis quanto.

Crédito de Imagens: 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo | Divulgação


Ficha Técnica
Título Original e Ano: Queen Kelly, 1929.Direção: Erich von Stroheim. Roteiro: Erich von Stroheim. Fotografia: Gordon Pollock, Paul Ivano. Montagem: Viola Lawrence. Música: Adolph Tandler (1931), Eli Denson (2025). Direção de arte: Harold Miles. Elenco: Gloria Swanson, Seena Owen, Walter Byron, Wilhelm vonBrincken, Madge Hunt, Wilson Benge, Sidney Bracey. Nacionalidade: EUAGênero: Drama, Ficção. Produzido por: Gloria Productions for United Artists. World sales: Milestone Film. P&B. Duração: 105 min.

O príncipe Wolfram (Walter Byron) é um jovem amante das mulheres e das farras. Prestes a se casar com a ciumenta e impulsiva rainha Regina (Seena Owen), resolve passar sua última noite de solteiro com a órfã Kelly (Gloria Swanson), que rapta de um convento de freiras. Quando a rainha descobre que o príncipe está com a desvalida, irrompe no quarto e a expulsa com chicotadas do palácio real, para deleite de todos os criados e guardas. A imatura Kelly, com extrema vergonha e tristeza, tenta se suicidar, atirando-se em um rio, mas é salva por um policial e é levada de volta ao convento. Chegando lá, recebe a mensagem de que sua tia moribunda que mora na África quer vê-la em seu leito de morte. Na África, atende o último desejo da parente rica e casa-se com um idoso Jan (Tully Marshall) com deficiência. Recusando-se a dormir com o marido imposto à força, vai administrar o bordel de Jan, que agora é seu. Enquanto isso, na Europa, o príncipe que está preso por ordem da rainha, após libertado, resolve que ama Kelly e quer se casar com ela. Viajando para África, a encontra já casada e dona de um bordel. Mas o destino, como em uma novela brasileira ou um melodrama americano, arremata tudo. A rainha acossadora e o marido depravado morrem e o príncipe Wolfram e a rainha Kelly podem finalmente se casar e viver eternamente felizes no palácio real.

Essa é a estória recuperada do Stroheim: um melodrama cheio de reviravoltas, com personagens sensuais e românticos. Na estória que foi apresentada ao mundo em 1932, numa tentativa pífia de conseguir algum lucro, o ato final acaba após a cena de Kelly se jogando no rio. Ela morre e o príncipe lamenta seu corpo no convento de freiras, arrependido da sua tentativa de sedução. Lamentavelmente, muitas das cenas da África se perderam e foram substituídas por fotos ou textos. Mas, mesmo assim, essa película inacabada demostra ser um grande filme que, por custa de falta de visão do produtor, não foi concluída. O dinheiro e a arte às vezes não se casam bem. O restaurador Dennis Doros fez o trabalho de sua vida, recuperando este magnífico filme e relançando-o no Festival de Veneza de 2025. Quem sabe, mais material perdido ainda seja encontrado e dentro de alguns anos outra versão de Queen Kelly seja lançada, mais completa ou até mesmo finalizada.

O que impressiona demais no longa, ainda hoje, é como Stroheim não se curvava à moralidade da época. A primeira cena do filme é a rainha Regina, seminua na cama com um gato cobrindo os seios. Depois aparece o príncipe Wolfram, em uma carruagem repleta de prostitutas, bêbado que nem um gambá. A tentativa de sedução de Kelly, raptada de seu convento, é um estupro hediondo, caso consumado. As cenas da África são deliciosamente despudoradas, o Jan com suas amantes, sejam negras ou brancas, é de uma ousadia incrível, em um Estados Unidos onde as pessoas pretas eram linchadas nas ruas por qualquer motivo. Essa habilidade do genial diretor austríaco em filmar os desvalidos e depravados e torná-los os heróis da estória é seu toque de Midas, nunca um melodrama foi tão divertido e transgressor. Infelizmente as aventuras de Kelly no bordel se perderam. Acredita-se que essas cenas talvez deixariam os espectadores de cabelo em pé. Uma curiosidade a mais para arrematar o rol de lendas que cerca esta película é que uma das cenas com o cineasta aparece em Crepúsculo dos Deuses, quando Norma apresenta ao seu sugar baby roteirista as glórias do seu passado de atriz. O filme em preto e branco e mudo faz parte da programação da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chegando a ter três exibições no evento.

Nota: 9/10.

Vinheta oficial | 49ª Mostra


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