quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Cyclone, de Flávia Castro

 
“ - Os franceses não sabem como as coisas funcionam por aqui… 
- É… Mas foi um brasileiro quem disse isso!” 

Apesar de abordar situações ocorridas há mais de cem anos, os dilemas e injustiças enfrentados pela dramaturga e operária Maria de Lourdes Castro [1900-1919] permanecem dolorosamente atuais, a despeito das vitórias obtidas pelos movimentos de emancipação feminina. Ainda hoje, infelizmente, o aborto é enxergado como um tabu, sendo um tema decisivo nos debates políticos e, lamentavelmente, geralmente contribuindo para o rechaço público, em âmbito quantitativo, dos candidatos que o defendem. Neste sentido, é mui oportuno que uma biografia intimista como esta seja lançada, trazendo uma representação válida sobre uma artista obnubilada pelos talentos masculinos do período – não por ser inferior a eles, mas apenas por ser mulher. 


Interpretada por Luíza Mariani, que já havia interpretado a personagem real nos palcos, neste filme, ela prefere ser chamada como Daisy, antes de optar por seu pseudônimo artístico, Cyclone. Apaixonada pelo diretor teatral Heitor Gamba (Eduardo Moscovis), que é casado, ela o auxilia na adaptação de diversas peças – em especial, “Os Bruzundangas”, a partir do romance homônimo de Lima Barreto [1881-1922] –, mas nunca é creditada por isto, o que dificulta a obtenção de documentos que permitam que ela viaje, já que, naquele período da primeira metade do Século XX, as mulheres ainda eram impedidas de sair do Brasil desacompanhadas… 


Órfã de mãe (sobre o pai, não se comenta nada) e envolvida num relacionamento amoroso que só a desfavorece, Daisy passa a escrever de maneira compulsiva, convertendo em enredos dramáticos as notícias sobre feminicídios que ouve nos bondes em direção ao trabalho. Sobrevivendo enquanto tipógrafa, numa editora de apoio grevista, Daisy é comumente assediada por seu patrão Paco (Ricardo Teodoro), o que só piora quando ela descobre que está grávida… 


Crédito de Imagens: Muiraquitã Filmes, Mar Filmes - BRETZ Filmes - Divulgação
Indicado ao "", no Munich Film Festival, e ao "", no Shanghai International Film Festival

A despeito da subestimação a que é submetida por seus avaliadores teatrais – na primeira seqüência, sequer permitem que ela recite alguns diálogos de uma de suas obras, numa avaliação –, Daisy consegue ser aprovada num programa que concede bolsas de estudos para dramaturgos, em Paris, mas ela enfrentará inúmeras dificuldades, antes de conseguir aceitar este sonho. A gravidez indesejada à frente, mas também a rudeza do tratamento burocrático concedido pelo funcionário Sr. Rodrigues (Rogério Brito, em boa atuação). 


A reconstituição de época transita entre elementos do período e aspectos que nos obrigam a uma comparação com o período atual, confirmando as intenções organicamente militantes da obra, em seu feminismo pragmático: a melhor amiga de Daisy, Marie (Karine Teles), é ainda mais subestimada em seus intentos de tornar-se atriz, sendo acusada de um crime que não cometeu e eventualmente aprisionada por libertinagem. Isso impede que ela esteja ao lado de Daisy num momento-chave, que é quando ela se submete a uma operação abortiva numa clínica clandestina, o que causar-lhe-á um adoecimento progressivo e letal. Enquanto condição perturbadora, o fato de que Marie é acusada de ter furtado um dinheiro que, na verdade, foi utilizado por Daisy para pagar pelo aborto. Outro tema importante do roteiro: a delicadeza das relações entre mulheres, em situações em que devem estar unidas. 

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: Cyclone, 2025Direção: Flavia Castro. Roteiro: Rita Piffer. ElencoLuiza Mariani, Eduardo Moscovis, Karine Teles, Luciana PaesMagali Biff, Ricardo Teodoro, Helena AlbergariaRogério Brito. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Fotografia: Heloísa Passos. Montagem: Joana Collier e Flavia Castro. Direção de Arte: Ana Paula Cardoso. Figurinos: Gabriela Marra. Caracterização: Mariah de Freitas. Empresas produtoras: Mar Filmes e Muiraquitã Filmes. Empresa coprodutora: VideoFilmes e Claro. Produção: Luiza Mariani, Joana Mariani e Eliane Ferreira. Coprodução: Walter Salles e Maria Carlota Bruno. Distribuição: Bretz Filmes. Duração: 01h41min.

Neste sentido, o roteiro é mui assertivo ao inserir as personagens de Helena Albergaria, Luciana Paes e Magali Biff: a primeira tem uma breve participação como uma professora de piano, que, presa a um casamento que também a desfavorece, não pode auxiliar Daisy em suas necessidades financeiras; a segunda interpreta a sua prima Lia, de origem italiana, que se esforça para auxiliá-la, mas é limitada pela brutalidade de seu marido; e a terceira, ótima, surge como Ada, uma cantora enlutada, que reage etilicamente ao falecimento recente de sua amada. Continuamente embriagada, Ada não trata Daisy muito bem, em seus primeiros contatos, mas ambas desenvolverão uma amizade de amparo mútuo, visto que são bastante maltratadas por uma sociedade misógina – uma, por ser assumidamente lésbica; outra, por recusar terminantemente o conformismo em meio à penúria material. 


Na verdade, o roteiro de Rita Piffer adapta de maneira demasiado livre as bases literárias que mencionam Maria de Lourdes Castro, sendo que a mesma teve uma colaboração marcante em escritos de autores que participaram da famosa Semana de Arte Moderna, em 1922. Porém, ela própria foi pouco mencionada neste evento, em parte devido ao seu falecimento precoce. No filme, ela é mostrada como alguém mais velha e que se ressente da morte por cirrose da mãe, aos trinta e sete anos de idade, alcoólatra e compulsiva. A abordagem cinematográfica é modesta, porém mui sincera naquilo que se esforça para denunciar. Como tal, é um longa-metragem merecedor de atenção e debate, que confirma a habilidade da realizadora na lida com questões referentes à importância da memória. Que a fulgurante Miss Cyclone seja mais conhecida depois deste filme, portanto! 

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