“De todas as coisas novas, a que eu menos entendo é o Carnaval”…
Numa das cenas iniciais, a então protagonista Kai (Liao Kai Ro), sentada num bar esvaziado, conversa com um turista argentino, que trabalha como tradutor de espanhol e alemão. Ela pede ajuda para conseguir comida, mas a cozinha já está fechada. Ele, então, oferece-lhe uma caipirinha e, quando o funcionário do estabelecimento entrega a bebida, a câmera o acompanha até ele sair de cena. Quando Kai volta para o hotel, e o aparelho de ar condicionado apresenta um problema eletrônico, a câmera faz o mesmo movimento para a esquerda, quando a hóspede taiwanesa sai do quarto e analisa a fiação. Estes são indícios de uma modificação de perspectiva que o próprio filme fará, quando, depois que Kai encontra alguns cartões-postais com relatos do cotidiano de Xiaoxin (Chen Xiao Xin), o roteiro passa a acompanhar esta última, convertendo-a em protagonista…
Num estilo de narrativa assemelhado aos filmes do cineasta argentino Martín Rejtman, “Dormir de Olhos Abertos” (2024, de Nele Wohlatz) é uma produção bastante sintomática, no que tange à sua abordagem multinacional: a diretora é alemã, os atores e personagens são predominantemente chineses, as situações ocorrem em cidades de Pernambuco e alguns diálogos e parte da narração são falados em espanhol. É um filme, portanto, que diz muito sobre a contemporaneidade, e sobre como funcionam os (des)encontros hodiernos, acompanhados por uma característica sensação de despertencimento.
Na conversa supracitada, entre Kai e o tradutor, ela questiona se ele compreende o que está sendo falado, ao transladar as sentenças de uma língua para outra, alegando que, “muitas vezes, as pessoas sequer conseguem se entender em seu próprio idioma”. Pensamos que eles encetarão um romance, ou algo assim, mas o tradutor não mais aparece, daí por diante. Ao invés disso, Kai busca por um conterrâneo, em meio a uma feira nordestina, e, ao encontrar Fu Ang (Wang Shin-Hong), numa loja de guarda-chuvas, pede-lhe um alicate, assegurando que o devolverá em breve. É quando surge o crédito titular do filme, que nos apresenta ao dia a dia de Xiaoxin…
Crédito de Imagens: Blinker Filmproduktion, CinemaScópio, Ruda Cine, Yi Tiao Long Hu Bao International Entertainment Company - Vitrine Filmes, Sessão Vitrine Petrobrás - | Divulgação
A co-produção Brasil, Alemanha, Taiwan e Argentina contou com estréia no Festival de Berlim, em 2024, mas também passou pelo Festival do Rio e pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no mesmo ano.
Vivendo com a sua tia, que enriqueceu comercializando bugigangas e contrata imigrantes chineses de maneira sub-remunerada, Xiaoxin envolve-se emocionalmente com os dramas de seus companheiros de labuta, sendo Fu Ang um deles – bastante azarado, aliás. Percebendo que os dentes dele enegreceram, quiçá por conta da tristeza, Xiaoxin começa a escrever – em espanhol – algumas considerações numa pilha de cartões-postais, naquilo que, para ela, é o projeto de um livro. Mas ocasiões inusitadas provocarão a interrupção deste projeto. Num determinado momento, ao experimentar um ‘déjà vu’ à beira da piscina, Xiaoxin sente como se estivesse sumindo; noutro instante, alguém derruba uma melancia na área da mesma piscina, enquanto ela interage com os seus conterrâneos!
A trama desenvolve-se sob os paradigmas do filme-painel, com a narrativa acompanhando um personagem, às vezes outro. Sabemos poucas informações acerca do passado de cada um deles, mas estas são suficientes para que simpatizemos em relação aos mesmos, quando testemunhamos Kai ser abandonada pelo namorado em um aeroporto, quando descobrimos que Xiaoxin fica indecisa ao responder se o “seu cheiro mudou no Brasil”, pois viveu em diversos países, antes de desembarcar na cidade de Recife, ou quando conhecemos Leo (Nahuel Pérez Biscayart), que já foi assaltado diversas vezes, no Brasil, e cuja namorada trabalha como costureira na China, e desgosta da cor verde. São detalhes que parecem triviais, mas que permite que nos apeguemos àquelas pessoas, manifestações fílmicas de indivíduos que encontramos diariamente pelas ruas, quando saímos de casa…
Trailer
Ficha TécnicaTítulo Original e Ano: Dormir de Olhos Abertos, 2024. Direção: Nele Wohlatz. Roteiro: Nele Wohlatz, Pío Longo. Elenco: Liao Kai Ro, Chen Xiao Xin, Wang Shin-Hong, Nahuel Pérez Biscayart, Lu Yang Zong. Nacionalidade: Brasil, Argentina, Taiwan e Alemanha. Gênero: Comédia, Drama. Direção de Fotografia: Roman Kasseroller. Direção de Arte: Diogo Hayashi. Figurino: Rita Azevedo. Montagem: Yann-shan Tsai, Ana Godoy. Som Direto: Javier Farina. Direção de Som: Mercedes Tennina, Tu Duu-Chih. Mixagem de Som: Sebastián González, Tu Duu-Chih. Correção de Cor: Hung Wen Kai. Supervisão de Efeitos Visuais (VFX): Tu Wei Ting. Produção: Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho, Justine O., Roger Huang, Violeta Bava, Rosa Martínez Rivero, Meike Martens, Nele Wohlatz. Produção Executiva: Dora Amorim, Maurício Macedo. Gerência de Produção: Mariana Jacob. Empresas Produtoras: Blinker Filmproduktion, CinemaScópio, Ruda Cine, Yi Tiao Long Hu Bao International Entertainment Compan. Distribuição: Vitrine Filmes - Sessão Vitrine Petrobrás. Duração: 97 min. |
“Dormir de Olhos Abertos”, em sua variedade de abordagens, destaca-se pela leveza com que expõe os cotidianos daqueles personagens, na tentativa de adaptação em um país muito diferente daquele de onde vieram. Eles reclamam que, aqui, as mudanças ocorrem de maneira lenta e que as frases são formuladas de uma maneira estranha. Mas, no que diz respeito aos sentimentos de inadaptação, os procedimentos são bastante semelhantes, sendo merecedoras de citação as tentativas de aproximação por parte dos brasileiros, como quando uma funcionária do condomínio (Gildete Santiago da Silva) oferece um protetor solar para Xiaoxin ou quando ela é convidada por uma jovem privilegiada para ouvir discos de vinil em seu apartamento.
Dirigido de maneira segura – inspirando-se nas produções de Jacques Tati, em viés dramático – e contando com interpretações despojadas de todo o elenco, este filme se encerra de maneira fascinante, quando, de volta à perspectiva de Kai, ela exclama que ainda está acostumada ao fuso horário de seu país natal e, ao deitar na areia da praia, é executada a canção “Presente Cotidiano”, de Luiz Melodia, na maravilhosa interpretação de Gal Costa. Ao término do filme, ainda sabemos pouco sobre aqueles personagens, metonímias de pessoas a quem devemos prestar mais atenção do lado de fora da tela, em nossas andanças diuturnas. Filmaço, por conseguinte. Uma gratíssima surpresa!
HOJE NOS CINEMAS
O longa entra em cartaz a preços populares pelo projeto "Sessão Vitrine Petrobrás".
Mais informações sobre a SESSÃO VITRINE PETROBRAS:
Site: www.vitrinefilmes.com.br/sessao-vitrine
Facebook: www.facebook.com/sessaovitrine
Instagram: www.instagram.com/sessao.vitrine
Os ingressos são vendidos a preço reduzido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Pode falar. Nós retribuímos os comentários e respondemos qualquer dúvida. :)