Abigail e a Cidade Proibida, de Aleksandr Boguslavskiy


Abigail e a Cidade Proibida é uma co-produção de fantasia entre Rússia e Estados Unidos. O que pode parecer inusitado em um primeiro momento, dadas as circunstâncias diplomáticas entre os dois países há décadas. É (quase) certo que a Guerra Fria já acabou, mas as diferenças entre essas nações continuam sendo bastantes significativas culturalmente. No cinema, existe um caso clássico dessa disputa entre dois dos cineastas mais adorados (no sentido religioso mesmo) e suas visões sobre o futuro da humanidade e nossa relação com a tecnologia. Solaris (1972), de Andrei Tarkosvky, é considerado uma resposta à esterilidade de Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Enquanto Kubrick dá a resposta de todos os segredos do universo (literalmente) no fim da jornada de seu engenheiro-astronauta, Tarkovsky tira o cosmonauta da Terra apenas para fazê-lo voltar-se para si mesmo. Esses filmes são exemplos de como operam as questões que povoam os imaginários desses países. 

Por esses motivos, seria empolgante descobrir que profissionais dos dois países se uniram em um projeto em 2019. A pluralidade de pensamento é importante e enriquecedora e Abigail realmente é um filme que tenta unir referências pop dos dois países. A protagonista (Tinatin Dalakishvili) que dá nome ao filme vive numa cidade isolada dos perigos que a rodeiam, mas não conhecemos. A cidade então vive num clima de vigilância totalitário com uma estética steampunk enquanto guardas mascarados analisam os habitantes a procura de pessoas infectadas que devem ser levadas para uma quarentena. O próprio pai de Abigail é levado pelo comandante da cidade quando ela era criança. Abigail cresce e vai descobrindo os verdadeiros motivos pelo sequestro de seu pai e que a epidemia que o Estado tenta combater é, na verdade, o poder mágico de alguns de seus habitantes. 

Não fica muito claro que tipo de coisas os poderes especiais do grupo oprimido podem fazer, parece que gira em torno da energia deles. Claro que batalhas são travadas através disso. A estética steampunk vem pra dar o tom pré-programado de distopia, mas esse clima meio Jogos Vorazes é mal executado. Toda a jornada de Abigail se dá em volta da busca pelo pai, o que a faz cruzar o caminho com um grupo de revolucionários contra a tirania estatal. Mas nos momentos mais críticos do filme, a resolução de ambos os problemas chega no mesmo pacote e ainda exige novas funcionalidades de seus poderes. O filme tenta dar as dicas para essa resolução durante vários flashbacks, mas é tudo tão corrido e arbitrário que soa como deus ex machina. 

A própria revolução é feita às pressas. O líder Norman (Rinal Mukhametov) não tem tempo pra treinar Abigail, mas também não tem tempo pra organizar um plano direito, o que dá à protagonista uma importância necessária só por tentar colocar algum planejamento nas operações. O interesse romântico entre eles segue a mesma linha e acaba se justificando nas entrelinhas pelo poder da garota que o impressiona.

A União Rússia-Estados Unidos acaba se limitando às regências que estes podiam oferecer àquela. Referências e aparato técnico-cultural: o CGI, com exceção da fada, é bastante razoável e o filme é todo em inglês, inclusive no nome os personagens. Abigail parece um filme que quer se passar por americano e usa tudo que conhece da cultura pop pra consegui-lo, mas não sabe muito bem como dosar. Assistimos a uma cópia de aventuras adolescentes americanas com alguns toques russos, como as alusões a justificativas socialistas para o controle populacional e até uma cena em que Abigail flutua sobre a cama, imagem clássica de O Espelho de Tarkovsky. É um filme com apelo para a cultura de franquias, mas que infelizmente não encontra nada muito charmoso pra vender ao mercado ocidental.

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Escrito por Marisa Arraes

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