Nefarious, de Chuck Konzelman & Cary Solomon | Assista nos Cinemas



“Os demônios não possuem crenças: nós temos o conhecimento!”


Dirigido pelos mesmos roteiristas de produções doutrinárias como “Deus Não Está Morto” (2014, de Harold Cronk) e divulgado como “um filme de terror cristão”, “Nefarious”, de Chuck Konzelman & Cary Solomon, obtém êxito publicitário a partir da obnubilação de um truísmo: a maioria dos filmes de terror repousa na aceitação do cristianismo como lógica onipresente, a fim de legitimar o Mal como algo a ser combatido. Neste sentido, o filme repousa num maniqueísmo advindo de sua filiação às causas da direita política, como a proibição do aborto e refutação da tolerância em relação a criminosos. As contradições são abundantes na trama, mas os diretores foram sagazes ao converterem isso numa espécie de mote metalingüístico, a ponto de sermos intimamente confrontados pelas palavras recitadas durante os créditos finais. O que ocorre ao protagonista (ou antagonista?) é uma crise que nos é repassada enquanto reflexão: será que não estamos contribuindo para que os desígnios satânicos se instalem na Terra? 


A formulação desta pergunta deixa evidente que a fruição deste filme torna imprescindível a aceitação de seu discurso. Ou melhor, do embate erístico – especialidade procedimental do ideólogo Olavo de Carvalho [1947-2022] –, enquanto algo adaptável às carências e receios dos partícipes de um julgamento: para que o filme funcione adequadamente, é essencial que o espectador projete algumas de suas culpas num dos dois personagens principais. A trama é ostensivamente manipulatória, a atuação de Jordan Belfi é inconvincente e a direção adere a uma montagem com excessivos cortes, a fim de parecer dinâmica. Mas, apesar de seus variegados defeitos, não estamos diante de um filme ruim…

Um dos artifícios mais imediatamente elogiáveis do roteiro está no modo como ele adapta o livro “A Nefarious Plot” [“um plano nefasto”, em tradução literal], de Steve Deace, fazendo com que este mesmo título apareça na diegese, como uma publicação da qual depende a continuidade da malevolência do demônio titular – ou o seu enfrentamento, a depender da interpretação. Segundo o enredo, Nefarious é justamente o nome da entidade que supostamente possui o condenado à morte Edward Wayne Brady, impressionantemente vivificado por Sean Patrick Flanery. Aprisionado por assassinar pelo menos um sexteto de pessoas, ele precisa ser avaliado por um psiquiatra, a fim de ter a sua insanidade confirmada: se isso acontecer, ele será transferido para uma instituição manicomial; em caso contrário, ele morrerá na cadeira elétrica. 

 

É quando entra em cena o presunçoso e atormentado James Martin (Jordan Belfi): convocado para avaliar o prisioneiro, depois que o seu antecessor médico se suicida, ele avalia com inicial ceticismo as afirmações sobrenaturais de Edward. Pouco a pouco, ele passa a ser influenciado pela argumentação refinada de seu oponente, que parece conhecer detalhes de sua vida privada, inclusive quanto aos procedimentos abortivos levados a cabo por uma namorada. Como tal, ele é afligido por violentas dúvidas, hipertrofiando a sua responsabilidade pelo destino do prisioneiro, que alega que, se morrer, repetirá o exemplo do “Carpinteiro” (Jesus Cristo), em chave invertida: deseja-se tornar um mártir malévolo!

Créditos: Believe Entertainment (ll) / Divulgação
O faturamento do longa no primeiro fim de semana de lançamento em solo estadunidense chegou a 5.433.685 dólares.

Passado, na quase totalidade de seus noventa e sete minutos de duração, numa cela de interrogatórios, “Nefarious” corajosamente mantém em suspenso a atenção do público, através de diálogos espertos, que eventualmente se contradizem, de propósito, visto que há a suspeita de que Edward padeça de um distúrbio dissociativo de personalidade. Ao ser confrontado perante as conseqüências morais do aborto – eufemisticamente mencionado como uma “interrupção eletiva” –, James precisa decidir se confirmará a urgência ritualística do espetáculo da pena de morte, conforme desejado pelo diretor da prisão, Tom Moss (Tom Ohmer). Parece que está tudo definido desde o início, enquanto predestinação da malevolência. Será que é o que, de fato, ocorre? 


Tal qual se espera de uma obra embasada no polemismo e/ou maniqueísmo religioso, este filme possui muitas fragilidades compositivas, em razão de sua completa dependência da entrega do público ao jogo de alegações proposto pelos personagens, que conversam entre si por cerca de dois terços do filme. Mas o roteiro escrito pelos próprios diretores reverte essas mesmas fragilidades em prol de seu dogmatismo pretensamente cristão, sendo requisitados, a partir daí, versículos bíblicos, trechos em latim e menções jocosas às pautas esquerdistas contemporâneas, erigidas contra os “discursos de ódio”. Assistir a este filme é uma decisão moral, não apenas cinefílica!


Ao término da sessão, tudo indica que quem já é cristão tornar-se-á ainda mais crente e quem é agnóstico aplaudirá, nem que seja por vieses oblíquos, o oportunismo sagaz do entrecho, em meio à “guerra de narrativas” atual. Comprovando-se cinematograficamente apurado em sua aplicação das convenções de gênero – e, por isso mesmo, bem mais relevante que o supracitado “Deus Não Está Morto” – “Nefarious” consegue, através de uma dúbia celeridade advocatícia, evocar conceitos filosóficos propostos por teóricos como Roland Barthes ou Louis Althusser. Ao final, o que importa é assustar os membros influenciáveis da platéia, para que estes não pequem contra a castidade nem atentem contra a vida do próximo (em âmbito sobremaneira catequético), sem que seja evitada a formulação de tentações opostas. Isso faz com que a experiência não seja vã, portanto! 


Trailer


Ficha Técnica
Título Original: Nefarious, 2023; Direção e Roteiro: Chuck Konzelman, Cary Solomon. Elenco: Sean Patrick Flanery, Jordan Belfi, Tom Ohmer, Glenn Beck, James Healy Jr., Stelio Savante, Cameron Arnett, Mark De Alessandro. Gênero: Suspense, Terror, Drama. Nacionalidade: EUA. Distribuição: A2 Filmes. Duração: 93min.
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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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