Sem Ursos | Festival Filmelier nos Cinemas


“O senhor filma o tempo inteiro: não paras de filmar, pois desejas conseguir o teu final feliz”

Nas primeiras cenas deste filme, acompanhamos o que logo percebemos que se tratam de filmagens realizadas à distância. O cineasta Jafar Panahi aparece interpretando a si mesmo, confinado num vilarejo que faz fronteira com a Turquia. Sabemos, na dita “vida real”, que ele está impedido de realizar suas produções, pelo Governo iraniano, há algum tempo, o que não faz com que ele deixe de realizar ótimos longas-metragens, como o auto-elucidativo “Isto Não é um Filme” (2011, co-dirigido por Mojtaba Mirtahmasb). Como tal, em seus filmes há um flerte recorrente com o estilo documental, ainda que a decupagem minuciosa não deixe dúvidas quanto ao caráter ficcional das realizações…

Voltemos à mais recente produção, portanto: conforme dito, no início de “Sem Ursos” (2022), descobrimos que o diretor Jafar Panahi está dirigindo uma trama sobre refugiados, à distância. Uma mulher de nome Zara (Mina Kavani) consegue um passaporte falso, em nome de uma turista francesa, mas recusa-se em fugir do Irã sem a companhia de seu parceiro Bakhtiar (Bakhtiar Pnjeei). Quando o cineasta direciona algumas orientações para os atores, através de seu assistente Reza (Reza Heydari – que trabalhou como técnico de som, em colaborações prévias com o realizador), a conexão de internet cai. Panahi precisará da intervenção de seu senhorio, Ghanbar (Vahid Mobasheri), no afã por encontrar um local onde o sinal esteja ativo. É quando outra história passa a ser contada…

Ao perceber que Ghanbar está arrumado para sair para um evento, Panahi empresta-lhe uma câmera portátil, pedindo que ele filme a cerimônia de noivado da qual participará. Trata-se uma tradição local, na qual dois prometidos em casamento lavam os seus pés num rio. Ao voltar desse evento, Ghanbar descobre que Panahi está sendo procurado pelos anciões do vilarejo, pois, supostamente, fotografou um namoro não autorizado pelos mantenedores de outra tradição local, que determina que o umbigo de uma recém-nascida seja oferecido ao seu marido futuro, escolhido no momento de seu batismo. Obviamente, as tramas interconectadas ficarão ainda mais intricadas…

Trailer


Ficha Técnica

Título original e ano: Khers nist, 2022. Direção e Roteiro: Jafar Panahi. Elenco: Jafar Panahi, Naser Hasheimi, Vahid Mobasheri, Bakhtiyar Panjeei, Mina Kavani, Narges Delaram, Reza Heydari, Javad Siyahi, Yousef Soleymani, Amir Davari, Darya Alei. Gênero: Drama. Nacionalidade: Irã. Fotografia: Amin Jafari. Edição: Amir Etminan. Departamento de Arte: Federico Mazza. Figurino: Leyla Siyahi, Ülker Çetinkaya e Hasibe Seçil Kapar. Distribuidora: Imovision. Duração: 01h46min.      
No filme dentro do filme, que é descrito como uma reconstituição de eventos vividos pelos próprios intérpretes, estes demonstram insatisfação em relação ao diretor, pelo modo como são conduzidas as filmagens; no filme que é o próprio filme, Jafar Panahi é ameaçado por alguns moradores, no sentido de que ele possuiria provas imagéticas que poderiam corroborar uma acusação. O diretor-personagem faz com que o espectador mergulhe num cabedal de situações em que as tentativas de acordo dialogístico não parecem suficientes para resolver os problemas causados pelos desentendimentos humanos.

Como o lugar no qual Jafar Panahi está alojado fica próximo de uma fronteira nacional vigiada por contrabandistas, há uma permanente tensão criminal, que é multiplicada nas visitas freqüentes dos anciões e nas discussões que ocorrem nas filmagens urbanas, acompanhadas através do computador do cineasta. Orquestrando mais um roteiro que corresponde a um subgênero particular do cinema persa – o docudrama panahiano –, este diretor demonstra-se um tanto formulaico no modo como alinhava as suas subtramas, mas não imerecedor de láureas ou de atenção redobrada. Sabemos apenas o que o protagonista sabe, de modo que, no desfecho em aberto, a única certeza de que temos é que, de fato, o título corresponde a algo implantado pelos mais velhos ou poderosos, a fim de que os seus seguidores continuem temerosos, no que tange à pujança controladora das tradições. Quando as pessoas não chegam a bons acordos, a violência e o medo instauram-se definitivamente!

                                                                                                                      Créditos: Divulgação
A película começou sua jornada de exibições no Festival de Veneza de 2022 e até agora já ganhou quatro prêmios. Entre eles, o ''Prêmio do Juri'' no Venice Festival, ''Melhor Filme'' no Trieste Film Festival e no ''Oslo Films From The South Festival'' e também um prêmio de 'honra' ao diretor no Chicago International Film com o título de ''Cinematic Bravery''.

Demonstrando-se um tanto amargo em seu realismo habitual – que, para alguns, tende ao pessimismo –, Jafar Panahi abusa de recursos técnicos que, a despeito da aparência, desmistificam o tom documental do filme. Vide a edição em campo/contracampo nas conversas dentro de automóveis e os enquadramentos ensaiados quando o diretor-personagem interage com outras pessoas, principalmente, na sala reservada a juramentos, onde ele insiste em efetuar mais uma de suas filmagens intrafílmicas. Ficamos apreensivos ao longo de toda a projeção, sobretudo porque os dissabores prisionais do realizador são internacionalmente conhecidos. Seus filmes incomodam negativamente os governantes de seu país, já que ele é audaciosamente denuncista quanto aos problemas engendrados pela implantação de uma fé religiosa convertida em constituição federal, que não permite quaisquer questionamentos.

Não obstante o diretor ser um hábil condutor de atuações expressivas, obtidas através de intérpretes não profissionais, alguns partícipes deste filme titubeiam em seus gritos reclamantes e/ou persecutórios (destacamos o instante em que Bakhtiar revela que Zara já tentara suicídio ou a seqüência em que o amante supostamente fotografado por Panahi o procura), fazendo com que “Sem Ursos”, às vezes, não seja tão definido em sua proposta metaperturbadora, quanto o foram outros petardos do realizador. Mas é um compêndio de enredos espelhados que faz jus ao título: a quem serve o nosso silêncio, induzido pelo receio de ultrapassar fronteiras? Esse questionamento é expandido às convenções pretensamente rígidas de alguns gêneros cinematográficos. Jafar Panahi é um gênio!

A produção está disponível no catálogo do Festival Filmelier em 30 cidades brasileiras. 

Visite: www.festivalfilmelier.com.br e confira a programação. 

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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