Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos | Assista nos Cinemas


Falar de criacionismo, ciência e de suas fontes primordiais, os livros, não é algo muito fácil nos dias atuais em que ''ser estúpido'' virou moda e medalha de orgulho exposta no peito de uma boa parte de homens e mulheres ao redor do globo. O sempre muito necessário cineasta grego Yorgo Lanthimos, contudo, quebra esta vidraça com acertos satisfatórios quando instiga sua audiência em películas que fazem um estudo empírico da alma humana. Seu mais novo filme, ''Pobres Criaturas'', entrega uma jornada de conhecimento crítico da formação de uma jovem, enquanto esta vive uma leva de aprendizados. Estrelado e produzido por Emma Stone, a produção é uma adaptação direta do livro (em inglês) ''Poor Things'', do escocês Alasdair Gray. A obra literária, e fílmica, é respingada por clara inspiração no clássico da autora inglesa Mary Shelley, ''Frankenstein''. O longa-metragem conta ainda com Willem Dafoe, Ramy Youssef, Mark Ruffalo, Kathryn Hunter, Jerrod Carmichael, Margaret Qualley, Vicki Pepperdine, Suzy Bemba e Alfie Blessington no elenco.

Bella Bexter (Emma Stone) é uma criatura intrigante. A primeira vez que a avistamos, a ''moça-bebê'', de um metro e tanto de altura, ainda está ''engatinhando'' para a vida. Aprendendo a falar, andar, comer, alimentar bichos e conhecendo seu espaço. É acompanhada dia-a-dia por uma criada (Vicki Pepperdine) e pela figura de pai que se faz viva no deformado Doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe). O cientista leciona sobre anatomia do corpo humano com alta competência e saber. Em certa aula, o estudante Max MacCandles (Ramy Youssef) o surpreende com perguntas e os dois iniciam uma conversa que só termina na casa de Baxter. Ali, o jovem estudante se depara com a ''mulher infantil'' Bella e é convidado a auxiliar no experimento que esta o é, bem como tomar notas do seu desenvolvimento como um todo. A menina-mulher demonstra um rápido aprendizado e uma ótima assimilação de tudo que seus sentidos a proporcionam, o que deixa a dupla maravilhada. Ao passo que Bella vai conquistando mais e mais a capacidade plena de seu cérebro de criança, entra em contato com os desejos de seu corpo feminino, que aparentemente é mais maduro do que a mesma, e aos poucos o espectador vai conhecendo detalhes do experimento de Baxter, além do passado misterioso de Bella.

Como um pássaro fora da gaiola, Bella acaba indo conhecer a Europa, o norte da África e um pedaço da Ásia ao lado do advogado milionário Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) e deixando de lado o amor juvenil e puro que se instaura na mente e coração do libertário Max. A dupla de cientistas então passa a acompanhar de longe os novos rumos do seu experimento e apenas torce para que ele retorne para casa e alimente novamente os laços já estabelecidos. 

Trailer

Ficha Técnica
Título original e ano: Poor Things, 2023. Direção: Yorgos Lanthimos. Roteiro: Tony McNamara - baseado na obra ''Poor Things'', de Alasdair Gray. Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Mark Ruffalo, Kathryn Hunter, Jerrod Carmichael, Margaret Qualley, Keeley Forsyth, Vicki Pepperdine, Hanna Schygulla,Suzy Bemba e Alfie Blessington. Gênero: Comédia, Romance e Drama. Nacionalidade: Irlanda, Reino Unido e Eua. Trilha Sonora Original: Jerskin Fendrix. Fotografia: Robbie Ryan. Edição: Yorgos Mavropsaridis. Design de Produção: Shona Heath e James Price. Direção de Arte: James Lewis e Adam A. Makin. Figurino: Holy Waddington. Produção: Element Pcitures, Searchlight Pictures, Fruit Tree, Film4 em associação com TSG Entertainment. Distribuição: 20th Century Studios Brasil. Duração: 02h21min. Classificação: 18 anos.
O roteiro de Tony McNamara (A Favorita e Cruella) não exatamente vem falar somente da questão ''criador testando criatura'', mas investigar o que este segundo pode fazer e onde pode chegar com as ferramentas que lhe são dadas face ao poder do conhecimento. Bella, como mulher, instiga o Dr. Baxter por inúmeros caminhos da vivência humana feminina e da vasta capacidade que o seu jovem cérebro a proporciona. Ali se vê a sede pelo saber e a quebra de aprisionamentos morais e éticos. A personagem, assim que estabelece contato com sua sexualidade e com a vivência do mundo, entende a diferença de liberdades que um homem e uma mulher possuem e a partir de um lugar inocente segue um rumo de experimentação sem limites. As atitudes da jovem colocam ''os sentimentos'' que Duncan diz ter, em seu alto pedestal de homem elitizado, em cheque, e este último acaba não conseguindo lidar com as consequências das escolhas de Bella. Algumas baseadas no choque de realidade, outras no puro gosto pelo novo.

A criatura de Baxter se propõe viver, sentir, e ir além, mas também acaba dando de frente com situações tensas e de total surpresa. Todavia, em nenhum momento, tem se uma revolta contra seu criador, pelo contrário, Bella se mostra instigada pelos experimentos do pai e ao que é tido como feio, torto e horripilante, para ela é uma estranheza familiar, um alento (a todo momento se assiste animais distintos reformatados fisicamente e caminhando pelo castelo de Baxter). E a liberdade que seu pai a inspira a ter faz dela extremamente progressista e cheia de adendos que não caberia no conservadorismo cristão, ainda que esta se mostre simpática a crenças. 

Do lado misterioso da personagem, o público vai encontrar ''criticas'' claras ao casamento, as regulações feitas ao corpo e a vida feminina e também ao patriarcado. A morte e o renascimento. A depressão e a alegria. Contrastes que se conectam e que trazem ótimas reflexões.

                                     Courtesy of Searchlight Pictures. © 2023 Searchlight Pictures All Rights Reserved.
Lanthimos e Stone trabalharam juntos em ''A Favorita'' (2018) e foi neste período que o cineasta jogou a ideia do filme no colo da atriz.

Pobres Criaturas nos apresenta uma direção que se abre para falar de temáticas humanas e essenciais. O manuseio do elenco durante toda a jornada se faz cuidadoso, mas os artistas ganham uma condução livre e com arquitetura requintada. São camadas e camadas de experimentação com acertos primorosos, tanto no texto quanto na condução, e a tal da ''lacração'' que alguns tanto reclamam por ai nunca é vista. Brinca-se com as referências de filmes [Franskenstein, 1931, de James Whale], com os elementos góticos e com o enfrentamento aos modelos sociais ultrapassados. Lanthimos se coloca como aliado, volta sua lente para as capacidades femininas (e não é a primeira vez, aliás, que ele faz isso), no entanto, aqui sua perspicácia o faz recortar um tom instigante de ''elas querem mais e elas tem força para''. Não julga, abre portas. Sua audácia conquista, empodera e mostra um cinema excitante, repleto de caminhos bem respaldados, coloridos.

E se o roteiro, a direção e a atuação do elenco caminham bem, se faz jus destacar a glória desses profissionais. Emma Stone já interpretou jovens engraçadas, mulheres românticas, mocinhas afrontosas, mas aqui nos vende uma força da natureza. Tem cenas de nudez e sexo explicitas, que casam com a ideia do filme e não são gratuitas. Seu olhar se faz grande, curioso, seu andar, inicialmente mecânico e desengonçado, se tornam normalizados com o crescimento da personagem. É primorosa por todo o filme. Willem Dafoe nos deixa embasbacados com o brilhantismo de se demonstrar assustador e um notório médico maluco ao mesmo tempo. Aos poucos vai conquistando o espectador com sua delicadeza e dualidade constante. Também é doce e amoroso e deveras paizão. Um criador com poderes normais, o conhecimento. Ramy Youssef é o oposto de Mark Ruffalo em cena. Youssef é um homem antenado, consolidado em fatos e que se conecta fácil. Já Ruffalo é ambicioso, possessivo, doentio, um homem que vive o seu status e grandeza - para o ator, uma ótima reviravolta na carreira depois de tantos personagens românticos, mocinhos ou heróis. Como homens da alta sociedade, ainda aparecem o realista/pessimista Harry Astley, vivido por Jerrod Carmichael, e o sem escrúpulos Alfie Blessington, interpretado por Christopher Abbott. Temos ótimas construções femininas além da protagonista e estas vem por meio de personagens que são damas da sociedade já na melhor idade (Hanna Schygulla), donas de prostibulos (Kathryn Hunter), criadas rabugentas (Keeley Forsyth e Vicki Pepperdine) e mulheres de classe social baixa, como a jovem negra Toinette (Suzy Bemba). Um baita elenco e performances fenomenais.

                                     Courtesy of Searchlight Pictures. © 2023 Searchlight Pictures All Rights Reserved.
Yorgos conheceu o autor do livro ainda em 2009, mas só dez anos depois, conseguiu iniciar a produção do filme. Infelizmente, Alasdair Gray faleceu em 2019 e não acompanhou o desenvolvimento do filme.

Jerskin Fendrix assina uma trilha sonora enfática e que dá o tom para o caminhar da protagonista e da trama (escute aqui). O figurino de Holy Waddington brinca em demasia com as vestimentas das eras de época ao mesmo tempo que aplica as personalidades dos personagens nelas. Bela ganha roupas que acentuam simbolismo feminino e sexual  - o que ajuda o marketing do filme a estabelecer feminilidade nos pôsteres do longa. Toda estética do filme, inclusive, tem esse pormenor. Um detalhe vibrante e que eleva a criatividade artística da película. Os cenários majestosos criados em estúdios na Hungria nos levam a visitar Portugal (até ouvimos fado em alguns momentos), Grécia, França e Escócia. Muitos dos castelos, de fato, tem palco na própria Escócia, como o autor tinha em mente e apresentou ao diretor em encontro inicial.

Com caminhada de festivais iniciada em Veneza, onde ganhou o Leão de Ouro, o filme já soma o total de 381 indicações na temporada de premiações. Só no Oscar, levou 11, com direito a ''Filme'', ''Direção'', ''Roteiro Adaptado'', ''Atriz'', ''Ator Coadjuvante'', ''Trilha Sonora Original'' e entre outros. É assombroso, fabuloso, magnifico e ultra potente. Uma intensa aula da anatomia da mulher.

Avaliação: Cinco cérebros transplantados com maestria (5/5).

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Bárbara Kruczyński

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