O documentário Ernest Cole: Achados e Perdidos conta a triste história de um talentoso fotógrafo sul-africano que foi vencido pela vida. Não há desonra alguma nisto, há resistentes como Nelson Mandela que passam 27 anos numa prisão e conseguem liderar a África do Sul a superar o regime do apartheid, mas também há pessoas como Ernest Cole que, mais sensíveis aos dissabores da vida, acabam sucumbindo a um ciclo vicioso de autodestruição.
Nascido em 21 de março de 1940, em Eerstrust, Pretória, África do Sul, e falecido em 19 de fevereiro de 1990, em Nova York, Estados Unidos, exilado de sua terra e afastado de suas raízes. Excelente fotógrafo negro, sofreu na pele o regime cruel do apartheid do seu país, onde os brancos europeus subjugavam seus conterrâneos nativos, destruindo suas moradias, deslocando-os para favelas, obrigando-os a trabalhos braçais de baixíssimos salários e diminuindo suas chances de educação. Nesse regime de muita violência e vigilância, qualquer tentativa de sublevação era castigada com assassinatos e torturas.
Esse mundo cruel foi retratado em fotos lendárias pelo jovem Ernest. Com sua câmera fotográfica e correndo muito risco, seus registros eternizaram os abusos da época, onde os negros eram subcidadãos em sua própria terra, privados de sua dignidade e desprovidos de direitos básicos. Em 1966, ele se exilou nos Estados Unidos e em 1967 conseguiu publicar seu livro de fotografia ''House of Bondage'', ou melhor, ''Casa da Escravidão'', em português, que o alçou à fama instantânea por sua grande coragem e talento. Crédito de Imagens: Arte France Cinéma e Velvet Filme / Imovision - DivulgaçãoA produção passou por inúmeros festivais de Cinema, em 2024, entre eles, o Festival de Cannes e a Mostra Internacional de São Paulo.
Mas esta vivência anterior em um regime opressor, que o condicionava a ser menos que seus algozes, e longe agora dos seus amigos, família e da sua cultura, levou o rapaz a uma espiral de sofrimento e angústia da qual não conseguiu se livrar. Fotografando incansavelmente nos Estados Unidos ou em países da Europa nos quais transitoriamente morava, era muito sensível às críticas de que tinha perdido o talento. Os trabalhos e o dinheiro começaram a escassear, numa existência de solidão e angústia.
Chegou então ao extremo de virar sem teto, vagando pelas ruas das cidades norte-americanas e sem conseguir tirar mais fotos, por bloqueio mental e criativo. Até seu final melancólico, com apenas 49 anos, vitimado por um câncer e amparado em seus momentos finais por sua mãe, seu último vislumbre da África do Sul, a qual nunca tinha conseguido retornar, desde sua partida em 1966.
O diretor haitiano Raoul Peck, diretor também do filme indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2017, 'Eu Não Sou Seu Negro', faz desta história triste um relato muito íntimo, como se o próprio Ernest contasse sua trajetória, na voz de LaKeith Stanfield, ator americano indicado ao Oscar de na categora de ''ator coadjuvante'', em 2021, pelo fora de série ''Judas e o Messias Negro''. Aliado a esse recorte pessoal, emoldurado até por vídeos de entrevistas do talentoso fotógrafo, a própria história da África do Sul também é mostrada, bem como a de outros exilados. Nesse mundo de sofrimentos, batalhas, mortes, a esperança ressurge quando o apartheid é vencido. Mas para Ernest, essa vitória não significou muito, sua morte estava próxima e seu desejo de não mais fotografar já era um indício que tinha desistido, tinha sucumbido aos seus próprios pesadelos.
O acaso da vida, porém, permitiu que se fosse descoberto um grande segredo em 2018. Por razões desconhecidas, grande acervo de fotografias do artista, um total de sessenta mil negativos, estavam guardados e a salvo num banco sueco. Essas fotografias maravilhosas são mostradas no documentário. Muitas delas, mesmo não publicadas em vida, demonstram o grande artista que se perdeu, vencido pelas macrotragédias que assolavam seu país e seu povo e que foram internalizadas pelo sensível fotógrafo, na prova inconteste que o público e o privado se mesclam na vida das pessoas. É um grande filme e foi premiado no Festival de Cannes, em 2024, com o ''Golden Eye'', evidenciando a riqueza desta história.
Trailer
Ficha Técnica
- Título original e ano: Ernest Cole - Lost And Found, 2024. Direção e Roteiro: Raoul Peck. Narração: LaKeith Stanfield. Arquivo de Imagens: Ernest Cole, Leslie Matlaisane, Jürgen Schadeberg, Gerrie Hugo, Joe Mamasela, Benzien Jeffrey. Gênero: Documentário. Nacionalidade: EUA. Direção de fotografia: Wolfgang Held, Moses Tau. Música: Alexei Aigui. Montagem: Alexandra Strauss. Produção: Laurence Lascary, Raoul Peck. Empresas Produtoras: Arte France Cinéma e Velvet Filme - com apoio de Canal+, Netflix. Distribuidora: Imovision. Tempo: 105 min. Classificação: 14 anos.
Nota: 9/10.
EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS
Escrito por
Marcelino Nobrega
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