Iracema – Uma Transa Amazônica, Jorge Bodanzky e Orlando Senna


O filme Iracema – Uma Transa Amazônica é um capítulo importante na história do cinema brasileiro. Lançado em 1975 pelos cineastas Jorge Bodanzky, responsável também por Os Mucker (1978) e O Terceiro Milênio (1982), e Orlando Senna, que também dirigiu Diamante Bruto (1978), esta instigante mescla de documentário e drama ganhou os prêmios de melhor filme, melhor atriz, melhor atriz coadjuvante e melhor montagem no Festival de Brasília de 1980, após vários anos proibido pela ditadura militar. Merecidamente reconhecido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine como um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, é um libelo corajoso que denuncia a situação aviltante a que são submetidos a floresta amazônica e seus indígenas.

Na década de 70, um dos projetos mais caros aos militares era a construção da Rodovia Transamazônica, que, cortando a floresta ao meio, traria desenvolvimento à Região Norte do Brasil e aos seus habitantes. Essa era a propaganda oficial, a realidade é que a construção dessa estrada facilitou a destruição do ecossistema equatorial, a invasão e grilagem de terras e a exploração dos indígenas e migrantes pobres que lá viviam. Mas isso não podia ser comentado na época, a censura proibia, e os diretores lançarem um filme com essa temática foi um ato de muita bravura.

O caminhoneiro Tião Brasil Grande, interpretado pelo grande ator Paulo César Peréio, é um defensor ferrenho do desenvolvimento exploratório da Amazônia. A Rodovia Transamazônica é a porta de escoamento para toda a riqueza que a floresta tem a oferecer. Ele faz sua parte transportando madeira de lei, não declarada e sem nota fiscal, para a cidade de São Paulo. Iracema é uma indígena adolescente, de apenas 15 anos, que saindo de sua aldeia e chegando a Belém, na época da festa popular do Círio de Nazaré, resolve ficar na metrópole, ganhando a vida como prostituta. A indígena Edna de Cássia, que interpreta Iracema, aqui fez seu único filme.
 
O caminhoneiro e a puta se encontram em um bordel miserável da periferia da cidade. Tião resolve dar uma carona a Iracema até sua aldeia, mas a abandona no meio do caminho. Não era homem de ficar enrabichado com mulher nenhuma. Iracema se vira do jeito que pode e, de carona em carona, anda por todas a vilas que cresceram em volta da Transamazônica, sempre exercendo a função de meretriz. Até que tentam lhe ensinar outros ofícios, mas para a inexperiente garota, a prostituição é seu único caminho. A pobreza de toda a região em volta da estrada é aviltante, um registro trágico e realista de que o projeto dos militares não trouxe desenvolvimento.

                                                                       Crédito de Imagens: Gullane+ 
O longa foi restaurado pela Montanha Russa Cinematográfica com o apoio da SPCINE, Instituto Guimarães, CTAV, Mnemosine, IMS, PUC Rio e Cinemateca Brasileira. 
 
Até que um ou dois anos depois, Tião volta a encontrar Iracema num puteiro à beira da rodovia. Agora ele não transporta mais madeira e sim gado, a nova riqueza da Amazônia. A Iracema, aquela bela garota que no início da estória estava numa canoa, cheia de alegria e expectativa em chegar a Belém, agora é uma prostituta calejada, sem um dos dentes, bêbada e desesperançada, brigando com as colegas por qualquer cliente que chegue. Aquela menina que no início cobrava 30 cruzeiros por sua beleza, mas que Tião só pagava 20, mendiga por 5 cruzeiros que Tião, rindo muito, lhe nega na cara, a abandonando de novo na estrada. Essa é uma das cenas mais desoladoras já vistas no cinema nacional.

Durante esse intervalo entre os dois encontros, a vida de Iracema não foi fácil e o filme, quase um documentário, revela sem pudor essas agruras. Estupros, abandonos, brigas, isso é o normal na vida dessa menina. Existem as poucas amizades que ela faz na estrada, as mãos amigas que oferecem alternativas, mas para alguém a quem a vida oferece tão pouco, é difícil sair da miséria. É algo até internalizado! O íntimo é um espelho da realidade externa. Na década de 70, vê-se em imagens documentais as queimadas na floresta, as invasões de terras para pecuária, o trabalho escravo de migrantes, tirados de suas regiões com promessas falsas, a violência dos militares e policiais. Um Brasil eternizado em suas cores mais cinzas; no meio de tanta riqueza e exuberância, muita desgraça e exploração.

Trailer

 
Ficha Técnica
  • Título Original e Ano: Iracema - Uma Transa Amazônica, 1974. Direção: Jorge Bodanzky, Orlando Senna. Elenco: Paulo César Peréio, Edna de Cássia, Lúcio Dos Santos, Elma Martins, Natal, Fernando Neves, Wilmar Nunes, Sidney Piñon, Rose Rodrigues, Conceição Senna. Nacionalidade: Brasil, Alemanha Ocidental, França. Roteiro: Jorge Bodanzky, Hermanno Penna, Orlando Senna. Direção de Fotografia: Jorge Bodanzky. Edição: Jorge Bodanzky, Eva Grundman. Trilha Sonora: Jorge Bodanzky, Achim Tappen. Direção de Arte: Orlando Senna Companhias de Produção: Stop Film, Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF)Restauração: Coordenação técnica de Alice de Andrade e apoio do CTAV, Mnemosine, IMS, PUC Rio, Instituto Guimarães Rosa e Cinemateca Brasileira. Produção: Orlando Senna, Malu Alencar, Wolf Gauer, Achim Tappen. Distribuição: Gullane+. Duração: 91 minutos
 
O filme mescla genialmente o drama e o documentário. O Tião e a Iracema poderiam ter existido de verdade; são representantes de muitos que viveram e morreram nessas terras onde Deus e o Diabo peleiam num verde sem fim. A Floresta Amazônica, infelizmente, continua com esses mesmos problemas, acrescidos agora dos garimpeiros e sua procura por ouro, das hostes evangélicas e sua busca por almas, do crime organizado e do tráfico de drogas. Mas a arte faz sua parte, as Iracemas são registradas e suas jornadas despertam reflexões. Quem sabe um dia, para elas seja permitido um final feliz!
 
Nota: 9/10. 
 
O longa está estreando esta quinta-feira (24-07) em salas de Fortaleza, Aracaju, Belém, Brasília, Maceió, Salvador, Manaus, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Poços de Caldas Curitiba, Porto Alegre. 

Escrito por Marcelino Nobrega

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