Medusa, de Anita Rocha da Silveira | Assista nos Cinemas


“Promete ser uma mulher recatada, devota e submissa ao Senhor?”


No livro “A mise-en-scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo”, o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. gerou alguma controvérsia, ao utilizar esta última expressão para referir-se a filmes que “se apresentam como obras sensoriais e atmosféricas, que implodem as convenções do espaço fílmico e colocam a narratividade em segundo plano”. Segundo ele, o cinema de fluxo diz respeito às obras em que “a verdadeira ‘história’ do filme é o comportamento da luz, a captação do movimento, o sentimento dos ritmos”. Definitivamente, é o caso do filme ora resenhado.

Segundo longa-metragem da cineasta fluminense Anita Rocha da Silveira, “Medusa” (2021) reaproveita elementos que abundavam em seus curtas-metragens e no ótimo “Mate-me por Favor” (2015 - Disponível na Netflix), como o flerte contínuo com o cinema de terror e seqüências coreografadas que parecem videoclipes musicais inseridos na trama. Quando encontramos o nome da diretora creditado como responsável pela trilha sonora – ao lado de Bernardo Uzeda –, podemos intuir que, de fato, ela compõe os seus roteiros pensando nas canções que utilizará, o que justifica a excelente seleção de músicas famosas. Vide a fascinante abertura com “Cities in Dust”, do grupo Siouxsie and the Banshees.

Transcorrido numa época não identificada, à guisa de distopia, o enredo de “Medusa” apresenta-nos a um grupo de meninas pentecostais, que, sob a alcunha de Preciosas do Altar, saem juntas à noite, para espancar as mulheres que consideram promíscuas. A despeito da extrema violência destas ações, elas crêem que estão evangelizando e, no dia seguinte, acordam agradecendo a Deus por um novo dia. É assim que conhecemos Mariana (Mari Oliveira), que trabalha numa clínica estética e recebe a incumbência de acolher uma garota recém-chegada ao lugar em que vive, logo inserida em sua comunidade religiosa.

As Preciosas do Altar são comandadas pela bela e egocêntrica Michele (Lara Tremouroux), que não percebe (ou reconhece) a própria malevolência, visto que ela apenas pratica aquilo que é sugerido pelo pastor Guilherme (Thiago Fragoso), que aproveita-se das meninas para difundir os seus ‘jingles’ eleitorais. Elas, além disso, são cortejadas pelos Vigilantes de Sião, um grupo de rapazes militarizados, igualmente repetidores de jargões pretensamente cristãos, em meio aos seus exercícios aeróbicos e militares. Estes, em suas rondas noturnas pela comunidade, também hostilizam os moradores que consideram pecaminosos. Até que Mariana é ferida durante uma de suas agressões “missionárias”…

Trailer


Ficha Técnica
Título Original e Ano: Medusa, 2021. Direção e Roteiro: Anita Rocha da Silveira. Elenco: Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Bruna G, Carol Romano, João Oliveira, Bruna Linzmeyer, Thiago Fragoso, Inez Viana. Gênero: Fantasia e Terror. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: João Atala. Direção de Arte e Cenografia: Dina Salem Levy. Figurino: Paula Stroher. Caracterização: Maria Inez Moura. Som direto: Evandro Lima. Desenho de som: Bernardo Uzeda. Mixagem: Gustavo Loureiro. Trilha Sonora Original: Anita Rocha da Silveira e Bernardo Uzeda. Montagem: Marilia Moraes, edt. Empresa Produtora: Bananeira Filmes. Produção: Vania Catani, Mayra Faour Auad e Fernanda Thurann. Produção Executiva: Tarcila Jacob. Empresas Coprodutoras: MyMama Entertainment, Telecine, Canal Brasil, Brisa Filmes, Cajamanga. Distribuidora: Vitrine Filmes. Duração: 127 min.

Após ser despedida da clínica de estética – por não mais atender às condições de beleza exigidas pelo local –, Mariana é empregada numa clínica para pacientes em coma, onde espera encontrar uma atriz, Melissa (Bruna Linzmeyer), que teve seu rosto desfigurado após a intervenção de uma fanática religiosa, que, ao atirar querosene nela, inspira os ataques cometidos pelas garotas, “em nome da moral e dos bons costumes”. Esse é um dos aspectos menos inspirados do roteiro escrito pela própria diretora, mas é o ponto de partida para que, pouco a pouco, Mariana descubra sensações que a sua interpretação truncada e punitivista da Bíblia não permitia que ela experimentasse…

Muitíssimo bem fotografado e, conforme dito antes, composto por várias seqüências que parecem videoclipes, este filme demonstra um completo domínio de estilo por parte de sua realizadora, que, obviamente, concebe uma metáfora do que acontecia com a sociedade brasileira, sob a égide do Governo Bolsonaro: a crítica que ela estabelece não é contra a vocação religiosa, mas direcionada à obsessão hipócrita de pessoas que se consideram superiores às demais, a ponto de machucar outrem de maneira impune. O reconhecimento das culpas acontece apenas em situações de tendência à erotização, o que atinge um clímax promissor quando Mariana, por acaso, flagra seu colega de trabalho Lucas (Filipe Frazão) nu, após o banho. Dançar ao som de “Uma Noite e ½”, de Marina Lima, é algo que lhe possibilitará a catarse necessária!

                                                                                                                     Créditos: Divulgação
''Medusa'' estreou em Cannes no ''Director's Fortnight'', também passou por inúmeros festivais relevantes no mundo e já tem na prateleira dez prêmios advindos do Festival do Rio, IndieLisboa International Film Festival, Miami Film Festival, Raindance Film Festival Awards e muitos outros. 

Dentre os momentos mui inspirados deste filme, destacamos as versões de canções adaptadas à conjuntura religiosa das Preciosas do Altar (por exemplo, “Sonho de Amor”, popularizada por Patrícia Marx, e “House of the Rising Sun”, clássico de The Animals que aparece numa versão brasileira de extraordinário quilate feminista) e as interações dúbias entre Michele e Mariana, como quando a primeira grava um vídeo explicando às suas seguidoras “como tirar a ‘selfie’ perfeita, aos olhos do Senhor”. O ralo do banheiro de Mariana surge como catalisador das mudanças de perspectiva da protagonista, a partir das substâncias que ela lava em seu rosto (uma máscara esverdeada, no começo; o sangue que jorra de um ferimento, num momento-chave da trama; e a maquiagem aplicada por Michele, perto do final). No desfecho, o título do filme é justificado metonimicamente, a partir da relação mitológica entre Medusa e a deusa Atena. Como diz a sinopse do filme, “há de chegar o dia em que a vontade de gritar será mais forte”. E isso tem muito a ver com o que oprimia o Brasil, na época em que o filme foi realizado. As duas horas e sete minutos desta produção são inebriantes em sua percuciente atmosfera de revolta!

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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