Eu já imitei os ‘napë’ [homens brancos].
Até cortava o meu cabelo como eles”…
Baseado num livro homônimo (ver aqui) escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, “A Queda do Céu” , de Eryk Rocha & Gabriela Carneiro da Cunha, é assertivo por respeitar narrativamente a temporalidade do povo que acompanha: baseia-se num mito de caráter apocalíptico, referente a uma situação ancestral em que o céu quase desabou. Só não aconteceu por completo porque ele foi segurado pelos espíritos ‘xapiris’, que são designados para cuidar da natureza e do equilíbrio terrestre, quando a devastação e outras mazelas atingem níveis alarmantes. Porém, a invasão progressiva dos garimpeiros na floresta amazônica periga ocasionar uma nova e definitiva queda do céu, a qualquer momento…
Esta é a premissa deste documentário interessantíssimo, que nos apresenta a uma espécie de profilaxia comunitária, em que os parentes e companheiros de Davi Kopenawa convocam os poderes xamânicos, no afã por impedir que as doenças e a poluição trazidas pelos homens brancos [‘napë’] atinjam níveis irreversíveis. Numa seqüência fortíssima e bastante emocionante, um indígena ancião relembra como o seu pai adoeceu e morreu, em contato com invasores de suas terras. Por causa disso, hesita em ser filmado pelos diretores, questionando o porquê de confiar neles.
Crédito de Imagens: Aruac Filmes, Hutukara Associação Yanomami, Les Films d'lci, Rai Cinema e Stemal Entertainment/ Divulgação
O documentário foi exibido no Festival de Cannes e recebeu indicação em dois prêmios (SACD e o Golden Eye). No Festival do Rio ganhou prêmios direção e som e ganhou mais cinco prêmios em festivais pelos quais passou.
Responsável pela pesquisa antropológica que antecedeu o filme, a atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha alinha os seus interesses artísticos aos apanágios poéticos do realizador Eryk Rocha, responsável por filmes marcantes como “Jards” (2012), “Cinema Novo” (2016) e “Breve Miragem de Sol” (2019) , além do ótimo “Edna” (2021), em relação ao qual seu último trabalho guarda muitas similidades estéticas, inclusive no modo como ocorre a aproximação quanto à personagem titular, visto que Gabriela Carneiro da Cunha é também roteirista de ambas as produções. Em “A Queda do Céu”, o desenho de som, a cargo de Guile Martins, e a extraordinária fotografia, realizada pelo próprio co-diretor, junto a Bernard Machado, impressionam pelo modo como reproduzem as condições idealizadas da conexão entre homens e natureza, segundo as crenças yanomâmis.
Em mais de um momento, testemunhamos Davi Kopenawa e as pessoas que o acompanham inalando o pó alucinógeno de yãkoana, extraído da árvore paricá, num ritual de imersão onírica, quando os indígenas recebem os conselhos dos xapiris, acerca de como podem intervir diante de problemas imediatos e gerais, como o adoecimento de malária, que acomete as crianças da região. Para ilustrar esta situação, os diretores servem-se de imagens de um antigo média-metragem brasileiro [“Os Bandeirantes” (1940, de Humberto Mauro)] e de um longa-metragem recente do armênio Artavazd Pelechian [“A Natureza” (2019)], que documentam situações opostas, mas relacionadas em suas conseqüências – respectivamente, o ufanismo governamental que validou o desbravamento invasivo do território brasileiro, e o impacto destrutível de elementos naturais, quando desrespeitados irrestritamente pelos seres humanos que vivem sob o jugo do Capitalismo.
A despeito da desconfiança inicialmente demonstrada quanto à equipe cinematográfica, composta por diversas pessoas brancas, Davi Kopenawa consente em compartilhar os seus anseios e (des)esperanças, pois a dupla de diretores integrou vários yanomâmis à equipe, numa lógica de cooperação que tem a ver com o modo orgânico com que o documentário expõe as profecias do xamã, evitando o fatalismo dominante em religiões de caráter punitivo: ao invés disso, a intervenção dos xapiris acontece de maneira espontânea e mui perceptível, através do anúncio radiofônico do nascimento de um bebê, quando as imagens demonstravam como seria uma nova “queda do céu”…
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: A Queda do Céu, 2024. Direção e Roteiro: Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha . Com partipações de: Davi Kopenawa, Justino Yanomami, Givaldo Yanomami, Raimundo Yanomami, Dinarte Yanomami, Guiomar Kopenawa, Roseane Yariana e comunidade de Watorikɨ. Gênero: Documentário. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia e Câmera: Eryk Rocha e Bernard Machado. Câmera Adicional: Morzaniel Ɨramari e Roseane Yariana. Montagem: Renato Vallone. Som Direto: Marcos Lopes. Desenho de Som: Guile Martins. Mixagem de Som: Toco Cerqueira. Color Grading: Brunno Schiavon, Giovanni Bivi. Consultoria: Bruce Albert, Ana Maria Machado, Dário Vitório Kopenawa, Morzaniel Ɨramari e Marília Senlle. Assistente de Direção: Mariana de Melo. Tradução Yanomami: Ana Maria Machado, Richard Duque, Corrado Dalmonego, Marcelo Moura e Morzaniel Ɨramari. Produção Local: Lidia Montanha Castro e Naira Souza Mello. Gerente de Projeto: Lisa Gunn. Designer: Sofia Tomic, Camilla Baratucci.Produção Executiva: Heloisa Jinzenji e Tárik Puggina. Direção de Produção: Margarida Serrano. Produtores: Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha e Donatella Palermo. Produtor Associado: Richard Copans Produção: Aruac Filmes. Co-produção: Hutukara Associação Yanomami, Stemal Entertainment com Rai Cinema. Produção Associada: Les Films d'Ici. Distribuição Brasil: Gullane+. Distribuição França: La 25ème Heure. Distribuição nos EUA: KimStim Films. Duração: 01h50min.
Inebriante e mui reflexivo, em seus quase cento e dez minutos de duração, este filme confirma os méritos poéticos de seu co-realizador, que não titubeia ao estender a duração dos planos, com vistas à reprodução de efeitos condizentes com a realidade das pessoas filmadas. Vide a longa caminhada que surge na cena de abertura, filmada num enquadramento frontal, inicialmente à distância, culminando com o protagonista que encara diretamente a câmera – e, por extensão, o espectador. Com este gesto, Davi Kopenawa parece nos perguntar se estamos dispostos a pôr em prática aquilo que é sugerido pelos xapiris, através de sua intermediação.
Em suas admoestações mui contundentes contra o que ele define como “povo da mercadoria”, Davi Kopenawa conclama-nos a uma integração curativa com o espaço natural, consentindo que os realizadores filmem rituais íntimos, como a preparação de um mingau de bananas ou a celebração de um ‘reahu’, em homenagem ao sogro do protagonista. Ele esclarece que os yanomâmis não enterram os seus mortos, preferindo a prática da cremação, inclusive dos objetos e ambientes freqüentados pelo falecido. Saímos desta sessão muito mais humanizados, portanto. Ótimo filme, e um tratado válido de amor pelo planeta que permitiu a nossa existência. Recomendamos enfaticamente, em defesa de nossa sobrevivência!
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