Carmen, de Valerie Buhagiar| Abertura BIFF 2022


O 8º BIFF, Festival Internacional de Cinema de Brasília, teve seu ponta pé inicial na última sexta-feira (23) e segue com sessões no Cine Brasília e em diversos ambientes culturais do Distrito Federal até o dia 30 de setembro. O festival conta com filmes de diversos países e também do Brasil divididos em várias mostras: Competitiva Internacional, BIFF Júnior, Panorama África, Cinema Latino, Mosaico do Novo Cinema Brasileiro, Arco-íris Sueco (de curtas com temática LGBT), além de pré-estreias e uma homenagem à cineasta Agnès Varda.

Em sua abertura, o festival contou com o filme maltês-canadense Carmen dirigido por Valerie Buhagiar, filha de malteses que se mudaram para o Canadá em uma onda de migração ocorrida nos anos 1960. Durante a apresentação do filme no palco do Cine Brasília, a cineasta contou que, em uma visita para apresentar Malta e os familiares malteses ao filho canadense, conheceu uma tia distante que vivia como beata a serviço do irmão religioso. Segundo a tradição maltesa (e presente em alguns outros países católicos), era comum que algumas mulheres fossem “dadas” aos homens da família que se tornassem padres. Essa mulher não tinha direito a estudo nem a uma vida própria, sendo obrigada a servir ao padre por toda a vida em todas as suas necessidades, como limpeza e manutenção da casa, alimentação, serviços gerais e qualquer outra coisa que o homem religioso mandasse. Lembra bem o dito infantil sobre quem chega por último em uma brincadeira, vira “mulher do padre”. Ou seja, não tinha qualquer gerência sobre a própria vida. Ao conhecer a história de sua tia, uma mulher muito fiel a seus deveres, devota e piedosa, a diretora Valerie começou a pensar: “e se…?”.

Trailer


 Ficha Técnica
  • Título original e ano: Carmen, 2022. Direção e Roteiro: Valerie Buhagiar. Elenco: Natascha McElhone, Michela Farrugia, Steven Love, Richard Clarkin, Henry Zammit Cordina, Peter Galea, André Agius, Pauline Fenech e Paul Portelli. Gênero: Drama. Nacionalidade: Canada, Malta. Trilha Sonora Original: Richard Feren. Fotografia: Diego Guijarro. Edição: Matt Lyon e Peter Strauss. Direção de arte: Jon Banthorpe. Figurino: Gina Bonello. Distribuidora: Elite Filmes. Duração: .
Conhecemos Carmen. Já de meia idade e envelhecida pelos anos de servidão, nossa protagonista é calada e distante de todos, tendo no irmão e na igreja a totalidade do mundo que conhece. Carmen segue sua vida solitária enquanto ouve a truculência do irmão, não tem amigos nem outros familiares. Depois da morte repentina do padre, a personagem percebe que está sozinha na pequena cidade maltesa. Não tem onde morar, não tem como encontrar emprego, pois não tem educação formal, nem conhece ninguém que possa recebê-la. A Igreja, a quem tanto serviu, não se interessa muito em ajudá-la já que o novo padre também já tem a sua própria irmã-criada. Os habitantes da cidade espalham histórias sobre como ela talvez seja uma bruxa e que é seca por dentro, como se tivesse um “cordeiro congelado” no lugar do peito. Carmen está só.

Começa então a perambulação da protagonista pela cidade tentando não ser notada. A igreja é o único espaço que conhece e, assim como nos interiores profundos do Brasil, é o centro social da cidade maltesa. É onde as vidas de todos se cruzam, das jovens sonhadoras que precisam viver a vida que lhes foi dada, das crianças da escola que vão com a professora se confessar, das senhoras casadas que encontram conforto longe do marido.
Créditos: Divulgação    

A partir daqui encontramos a parte mais interessante do filme, Carmen virando um fantasma uma vez que (quase) nunca encarnou a pessoa que poderia ter sido durante a vida. Seu corpo perambula pela cidade, dorme pelos cantos, se esconde em lugares sacros. Os espaços, então, são muito bem trabalhados e sentimos a pulsação de uma cidade, mesmo pacata, a partir do olhar distanciado de Carmen. Essa distância (ver sem ser vista) dá a Carmen uma sensação de poder, de ação, que nunca tinha experienciado, o que a leva a se “infiltrar” na vida da comunidade através do confessionário da igreja. Sua alma bondosa e quase ingênua transmite os valores que recebeu da igreja, sejam oriundos dos dogmas ou da forma como foi enxotada da vida que conhecia pela própria instituição religiosa.

Mas essa postura “fantasmagórica” de Carmen não segue por todo o filme, uma vez que a proposta aqui é justamente dar à luz a personagem. Corporificá-la, parir Carmen ao mundo de vez. A partir de algumas viradas que vão cada vez mais trazendo Carmen à convivência em sociedade, o filme conduz a personagem por um turbilhão de aventuras e sentimentos conflitantes. Quem ganha somos nós que vivemos tudo isso junto à protagonista. Ao vermos a personagem precisar descobrir as coisas simples do mundo, as emoções mais adolescentes, os perigos mais óbvios, o filme conduz perfeitamente quem assiste pelas emoções e ideias de uma pessoa ingênua que só agora pode agir e pensar por si mesma.

Créditos: Divulgação   

Carmen atravessa histórias de amor, encontros com Jesus Cristo, riscos de violências, roubos à igreja e até um vestido novo se mostra algo surpreendente e libertador. Tudo é conduzido de forma leve e que afaga o coração, mesmo se baseando numa realidade que pode se mostrar tão penosa. Afinal, uma vida inteira de serviços a outrem sem direito à educação e a dizer “não” daria muita abertura a representações menos esperançosas.

O roteiro acaba sofrendo um pouco por conta disso ao tentar fechar demais todas as pontas e explicar quase todos os motivos que trouxeram Carmen até aquele momento. Tudo isso enquanto conta sua história de paixão e sua relação com a cidade e a história recente de Malta. Nada que se perca muito uma vez que os sentimentos trazidos são sempre postos em primeiro plano.

O filme de Valerie Buhagiar se mostra como respiro pela facilidade de condução da diretora, mesmo que não assuma tantos riscos em sua forma de contar histórias. O sentimento final é de encontro com as coisas simples da vida. As que realmente valem a pena.


SERVIÇO:

Festival Internacional de Brasília 

Data: 23 a 30 de setembro

Local: Cine Brasília, Sesc 504 Sul, Sesc Gama, Sesc Ceilândia, Sesc Taguatinga e Complexo Cultural Planlatina

Sessões Gratuitas, sujeita à lotação dos espaços. 

Sobre o Festival:

O Festival Internacional de Cinema de Brasília (BIFF), pioneiro no setor ao realizar um festival no formato híbrido, comemora dez anos em 2022. O evento acontece entre os dias 23 e 30 de setembro. O evento promove uma grande e merecida homenagem em memória de Agnes Varda, diretora belga-francesa, referência e ícone do cinema feito por mulheres. Além disso, promove o BIFF JR, que oferece ao público presente uma programação internacional diversa, e também o Mosaico Brasil O Novo Cinema Brasileiro, pela primeira vez no BIFF, uma aposta potente na vitrine e janela de produções nacionais que dialogam com novas tendências, conteúdos e olhares.

Confira a programação completa e os filmes selecionados para o BIFF 2022: 

Escrito por Marisa Arraes

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