“Quem se apaixona costuma ficar mais obcecado por seus próprios sentimentos que pelo objeto de desejo”!
Uma das melhores contribuições dos festivais internacionais de cinema é fazer com que entremos em contato com as inquietações de personagens dos mais diversos lugares do mundo, que, a despeito de suas diferentes configurações contextuais e de classe social, têm a ver com aquilo que, às vezes, lidamos em nosso dia a dia. Desde que disponhamos de tempo para refletir acerca daquilo que sentimos, obviamente. Nesta terceira parte da trilogia sobre questões sexuais e relacionamentos amorosos proposta pelo norueguês Dag Johan Haugerud, acompanhamos as interações dialogísticas de um grupo favorecido de mulheres, em que os hábitos literários são comuns…
Logo na abertura, somos apresentados à narradora Johanne (Ella Øverbye), uma adolescente que sente-se emocionalmente deslocada, como se seu corpo e sua mente seguissem fluxos diferenciados. Ela nos confessa que apaixonou-se perdidamente por sua professora de norueguês e francês, a artista têxtil Johanna (Selome Emnetu), e que sublimou esta paixão através de um relato mui detalhado de suas fantasias eróticas. Em dado momento, ela pede que a sua avó, Karin (Anne Marit Jacobsen), que é escritora, leia o seu rascunho, e esta percebe que os escritos de sua neta podem ser convertidos num romance de estréia…
Ao entrar em contato com o manuscrito de Johanne, a sua mãe, Kristin (Ane Dahl Torp), também se percebe fascinada pelos talentos narrativos da filha, ao mesmo tempo em que teme que ela tenha sido sexualmente abusada pela professora. Quando relê o texto, entretanto, isso faz com que ela entre em conflito com a sua própria mãe, ao relembrar as discussões que tiveram desde a infância, por conta de divergências opinativas. A mais marcante delas: a diferença de apreciações direcionada ao musical hollywoodiano “Flashdance – Em Ritmo de Embalo” (1983, de Adrian Lyne).
O que poderia ser uma discussão circunstancial converte-se num embate relevante entre as duas mulheres, o que evidencia as mudanças discursivas de uma geração para a outra: se Karin, vinculada à causa feminista desde a juventude, irritou-se ao perceber que, no filme oitentista, a promessa de igualdade de gêneros (metonimizada através da opção profissional da protagonista, que é uma soldadora), resvalou para a objetificação do corpo feminino, Kristin insiste que tinha o direito de quedar fascinada pela obra, revelando uma tendência à alienação, afinal confirmada em seus devaneios capitalistas, quando imagina que o livro de sua filha, se publicado, pode render algum dinheiro…
Crédito de Imagens: Motlys e Viaplay Group / Imovision - Divulgação
Todas estas questões são balizadas pela narração onipresente de Johanne, que demonstra muita consciência acerca do que é destacado ou suprimido em seu relato, fazendo com que o espectador seja convidado a avaliar o modo como a estória é contada, e não efetivamente o que está sendo contado – afinal, um fascínio quase banal de uma aluna insegura em relação a uma professora bem resolvida consigo mesma. Como tal, é evidente que o diretor Dag Johan Haugerud foi influenciado pela sutileza dos filmes dirigidos por Éric Rohmer [1920-2010].
Se, por um lado, esta influência é benfazeja, por outro, ela não consegue dirimir uma perspectiva eventualmente esnobe de enfrentamento dos dilemas cotidianos, por parte daquelas mulheres, cujos problemas parecem exclusivamente vinculados à discussão sobre a possibilidade de Johanne converter-se em escritora, ainda na adolescência. Parece que não há contas a pagar nem situações para se preocupar, além da ansiedade em levar o manuscrito para uma editora e conversar com Johanna, depois que ela descobre que seus encontros com sua quase homônima foram convertidos em narrativa. A quem este filme pode interessar, então? A cinéfilos eruditos que disponham de tempo considerável para as elucubrações, no sentido de que o diretor, também roteirista de suas obras, não tem receio em aderir à verborragia. Ou seja, os diálogos são demorados e um tanto enfadonhos, estendidos ao longo de uma hora e cinqüenta minutos de duração.
Em razão de os destaques desta obra serem a tergiversação narratológica e os talentos actanciais das atrizes envolvidas, os demais recursos técnicos são organizados de maneira excessivamente discreta, subordinados àquilo que a narradora deseja enfatizar em seu relato. Com tal, as músicas que ela ouve e a própria montagem da obra obedecem às suas diretrizes, o que desemboca num desfecho em aberto, num típico reencontro rohmeriano. É uma obra cuja imersão espectatorial requer suspensão de expectativas e aceitação daquilo que aquelas mulheres ricas têm a oferecer, numa conjuntura em que, para elas, é normal ter uma cabana de campo e irritar-se quando a mãe não pode ensinar a filha a tricotar, no imediato momento em que esta última deseja. Na Noruega, pelo visto, é assim – e é interessante que tenhamos acesso fílmico a isso!
Trailer
Ficha Técnica
- Título original e ano: Dreams (Sex Love), 2024. Direção e Roteiro: Dag Johan Haugerud. Elenco: Ane Dahl Torp, Ella Øverbye, Selome Emnetu.Gênero: Drama. Nacionalidade: Noruega. Direção de fotografia: Cecilie Semec. Música: Anna Berg. Figurino: Ida Toft. Edição: Jens Christian Fodstad. Empresas Produtoras: Motlys e Viaplay Group. Produção: Yngve Sæther, Hege Hauff Hvattum. Distribuidora: Imovision. Tempo: 110 min
26 de Junho nos Cinemas
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