Em 2006 foi promulgada pelo governo brasileiro a Lei 11.340, mais conhecida como "Lei Maria da Penha". Essa importante legislação veio para proteger as mulheres da violência doméstica, criando os mecanismos necessários de proteção e de assistências para as vítimas desses crimes. Essa lei trouxe dignidade para muitas mulheres e é um marco importante em nossa legislação. A cearense Maria da Penha, sobrevivente de múltiplas tentativas de assassinato cometidas pelo ex-companheiro e cuja trajetória inspirou a criação da lei que leva seu nome, tornou-se recentemente alvo de fake news. Em uma nova investida para difundir desinformação e promover um revisionismo seletivo, setores da extrema direita produziram um documentário que busca descredibilizar sua história real — obra que, atualmente, é investigada pelo Ministério Público. É nesse cenário que surge o filme brasileiro A Melhor Mãe do Mundo. Logo em sua cena de abertura, uma violência doméstica é retratada, inserindo de imediato o espectador na dura e persistente realidade que o longa pretende expor.
Gal, vivida por Shirley Cruz, é uma catadora de materiais recicláveis que tem dois filhos pequenos e trabalha duro no sustento da família. Gal é casada com Leandro, interpretado por Seu Jorge. Na cena de abertura ela aparece denunciando formalmente o companheiro por agressão. Essa atitude de coragem é logo substituída por medo quando ela percebe que a denúncia não teve o acolhimento necessário. Movida pelo desespero, ela resgata os dois filhos da casa de seu vulgo "companheiro" e foge com as crianças. Os pequenos são levados dentro da grande carroça onde ela coloca os materiais recicláveis. Para esconder dos filhos a situação de rua que os colocou, ela conta que eles estão vivendo uma grande aventura. O objetivo é fugir para a casa de uma parente em uma cidade próxima. O garoto compra a ideia por não entender a gravidade da situação, mas a filha mais nova compreende parcialmente o que está acontecendo.
A interpretação de Cruz é focada em expressões faciais marcadas por oscilações de medo e coragem. Ela entrega uma gama infindável de emoções que fazem com que o espectador entenda exatamente o que essa mãe está pensando mesmo que ela não fale uma palavra. A jornada da família até a chegada na casa dos parentes é marcada por inseguranças quanto ao mais básico na vida de um ser humano. Banho, comida, lugar para dormir. Uma marmita doada vira um grande banquete e uma lona se torna um grande acampamento a luz da lua. Pode-se alegar que o filme pesa um pouco na questão de retratação da pobreza, quase cruzando uma linha perigosa entre o crível e o estereotipado. Porém essa é a realidade de milhares de brasileiros e a diretora quer realmente discutir isso para além da questão da violência doméstica, entrelaçando e correlacionando os dois temas. Crescer na pobreza cria marcas difíceis de superar, não apenas de escassez mas de medo de perder até mesmo aquilo que está consolidado. Ter pouca instrução cria vulnerabilidades também em nossos relacionamentos.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: A Melhor Mãe do Mundo. 2025. Direção e Roteiro: Anna Muylaert. Colaboração de Roteiro: Mariana Jaspe. Elenco: Shirley Cruz, Seu Jorge, Rihanna Barbosa, Benin Ayo, Luedji Luna, Rubens Santos, Rejane Faria, Lourenço Mutarelli, Kauezinho Rodrigues, João Fellipe Felix. Participações especiais de: Katiuscia Canoro, Ayomi Domenica, Dexter. Nacionalidade: Brasil. Gênero: Drama. Direção de Arte: Maíra Mesquita e Juliana Ribeiro. Direção de Fotografia: Lílis Soares. Figurino: Nina Maria e Yuri Kobayashi. Maquiagem: Simone Souza. Coordenação de Pós-Produção: Beto Bassi. Montagem: Fernando Stutz. Som Direto: Ruben Valdes. Música Original: André Abujamra e George Nahssen. Supervisão de Edição de Som: Miriam Biderman, ABC e Ricardo Reis, ABC. Supervisão Musical: Anna Muylaert e Fernando Stutz. Desenho de Som e Mixagem: Ricardo Reis, ABC. Direção de Produção: Henrique Lapa. Direção de Elenco: Gabriel Domingues. Produtores: Ricardo Costianovsky, Tomás Darcyl, Gabriel Gurman, Clara Ramos, Bianca Villar, Fernando Fraiha, Karen Castanho e Anna Muylaert. Produtor Executivo: Deborah Nikaido, Leonardo Mecchi e Anatalia Lyrio. Distribuidora: Galeria Distribuidora. Duração: 106’. Áudio: 2.0 e 5.1. Formato: 4K 2D FLAT. Versões: Original (Português)
A diretora e também roteirista Anna Muylaert (Que Horas ela volta?) propõe também uma discussão sobre o patriarcado. Muitas vezes a família, que é quem deveria cuidar e zelar, acaba não o fazendo. Os homens se protegem entre si e criam uma estrutura de opressão onde as mulheres são sempre histéricas, descompensadas emocionalmente. "Mas foi só um tapinha!", dirão. Esse comportamento de machismo estrutural é reproduzido também por outras mulheres inconscientemente através do "mas vai jogar tudo fora só por causa de um desentendimento?". A diretora mostra de forma clara que quando o assunto é violência doméstica não existe PORÉM. Agressão é agressão. E microagressões também são agressões graves. Ao ser forçada a confrontar o seu agressor, Gal é soterrada e anulada de forma violenta pela sombra de um homem histérico e descompensado. Inclusive na cena do reencontro da mulher com Leandro. Seu Jorge tem um grande momento de atuação entregando altas doses de tortura psicológica e gaslighting.
Para tudo existe um limite, um ponto de não retorno. O roteiro sugere algo igualmente grave sobre Leandro e esse é o ponto de virada para que Gal tome nova decisão, uma ainda mais difícil. É nesse momento que cria-se também um contraste entre como reagem a família e os amigos da catadora. Muitas vezes pessoas que estão vendo tudo por fora terão uma visão mais empática que os de dentro e esse suporte, aqui personificado na figura de Munda, (interpretada por Clodd Dias) pode ser decisivo para evitar que uma mulher vire estatística de feminicídio. A diretora parece apontar que corrigir e denunciar casos de violência não é papel somente do Estado ou da família, mas de toda a sociedade na forma de acolhimento e inclusão.
Crédito de Imagens: Galeria Distribuidora/Divulgação
O longa já conta com 12 indicações diversas em Festivais de Cinema e duas vitórias, entre elas, o prêmio de "Melhor Roteiro"e "Melhor Fotografia"no Festival Internacional de Filmes de Guadalajara
A fotografia de Lilis Soares foca nos ambientes urbanos e amplos, com closes no rosto de Gal levando a carroça. Esse esquema Brasil, com paisagens amplas servem muito ao filme e ajudam a construir a sensação de que eles estão jogados à própria sorte em um mundo amplo e caótico. É na amplitude das ruas que mora o perigo. As cenas no estádio por outro lado são closes fechados, reforçando a ideia de que ao estar perto de milhares de pessoas a família continua desamparada. Os momentos genuínos de lazer e o amor pelo futebol dão um pouco de leveza ao tom dramático do filme e constroem nuances nas relações entre o trio. São os pequenos momentos cotidianos e diálogos mais simples que dão a impressão de estar vendo algo genuinamente brasileiro. A trilha de André Abujamra e George Nahssen acompanha os momentos marcantes do longa e os sons reforçam tons de brasilidade. Não deixa de ser realista e divertido ouvir Raça Negra em um churrasco ou Banda Calypso em momentos de descontração.
Anna Muylaert sabe construir tensão e usar de situações reais para discutir temas de primeira importância para o nosso país e para as nossas mulheres. Muito mais que mães, as mulheres brasileiras ocupam o papel de provedoras do lar, cidadãs e de força motriz do desenvolvimento da nação. Em um período conturbado de crescimento do conservadorismo fundamentalista é sempre importante ressaltar através da arte o papel central da mulher dentro da sociedade. O filme pode pecar em cenas piegas ou na exploração exagerada da pobreza a fim de gerar comoção, mas com certeza acerta em cheio ao usar seus elementos na discussão que se propõe e na representação do Brasil e de seus problemas mais enraizados, imprimindo realidade, sensibilidade e urgência.
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