Serial Kelly, de René Guerra | Assista nos Cinemas


“Eu sou uma puta assumida”!
Tal como acontece com o tipo de música que consagrou a cantora paraense Gaby Amarantos, a aparelhagem, este filme se destaca pela antropofagia referencial: é uma mistura que assimila todos os universos artísticos possíveis, transladando-os para uma conjuntura caracteristicamente brasileira, já que o filme se passa no Estado de Alagoas. Para que os cinéfilos saibam o que vão encontrar aqui, é como se “Pink Flamingos” (1972, de John Waters) e “Thelma & Louise” (1991, de Rodley Scott) fossem fundidos à estética brega, com toques de “Afogando em Números” (1988, de Peter Greenaway). Qualquer descrição é incapaz de sintetizar a pletora de elementos que atende pelo nome de “Serial Kelly”, de René Gerra!

Na cena inicial, a protagonista percebe-se cercada por um forte aparato policial. Caminhando de maneira ousada, ela é advertida de que precisa parar num determinado ponto, sob pena de ser alvejada por tiros. Percebendo que há um facho que luz que emula a iluminação de um palco, Kellyane (Gaby Amarantos) desobedece a esta regra, dá mais um imponente passo e começa a cantarolar, ‘à capella’, a letra de “Me Usa”, da Banda Magníficos: “Momentos de amor/ Quero com você/ Momentos eternos, pra nunca esquecer/ Se você me ama, me leva pra cama/ Acende essa chama de amor e querer”… Estabelece-se assim o ritmo dominante deste filmaço!
Créditos: Divulgação
Para o diretor, René Guerra, a cantora belenense é a interprete ideal para a cantora Kelly. “Gaby Amarantos é uma das artistas mais corajosas que conheço. Tudo no filme é político. Não rimos dela, rimos do absurdo que está no entorno dela. E da impossibilidade de evitar a pulsão trágica que permeia a personagem”. 

Depois dos créditos iniciais, em que testemunhamos o primeiro crime cometido pela protagonista, passamos a acompanhar o seu cotidiano profissional, no qual ela trabalha como animadora de um bordel improvisado, comandado pela raivosa Faísca (Aline Marta Maia), que trata Kelliane com aparente hostilidade. Logo saberemos o que está por detrás do relacionamento entre elas. Esta é a primeira parte do enredo, “Céu”, cuja violência intrínseca denota que o “Purgatório” e o “Inferno” não serão nada fáceis. Na vida de algumas mulheres, o sofrimento vem acompanhado dos contínuos maus tratos ofertados pela sociedade…

É nesse sentido que somos apresentados à antípoda de Kelliane, uma delegada que assume aspecto de antagonista, mas que parece compreender as razões que levam a personagem-título a assassinar os seus agressivos desafetos: Fabíola (Paula Cohen) não é devidamente respeitada por seus subordinados, em razão de ser mulher. Para piorar, ela percebe que eles tratam com desdém algumas vítimas, a depender de suas condições sociais. Quando é convocada para investigar o brutal homicídio de uma travesti, ela deduz que, “por aqui, cada defunto tem um cheiro diferente”. Por eventualmente submeter-se a programas sexuais, a vítima é declarada culpada por sua própria morte, o que indigna bastante Fabíola, em suas diligências policiais.
Créditos: Divulgação
O elenco celebra a diversidade e é formado por Gaby Amarantos, Paula Cohen, Igor de Araújo, Marcio Fecher, Thomas Aquino e Thardelly Lima

Ainda que se esforce para não espetacularizar a situação de Kelliane, convertida em “assassina serial” pela mídia sensacionalista, Fabíola comunica-lhe que ela é suspeita de cometer vários crimes e, como tal, não pode sair da cidade de Arapiraca, sob pena de ser considerada foragida. É obvio que ela desacata essa determinação, numa ambivalência de comportamentos femininos que assumirá uma verve mais ostensiva quando Kelliane testemunha um desfile de moda ‘gospel’, num ‘shopping center’, antecipando aquilo que ela vivenciará na segunda parte do filme, quando encontra a sua irmã, Wellany (Ane Oliva), casada com um pastor evangélico (Márcio Fecher).

Se a fotografia de Pedro Urano merece aplausos pelas cores fortes com que acompanha a saga de Kelliane – não tendo pudor em relação à exposição da nudez masculina – a montagem de Eva Randolph não funciona tão bem, visto que os ‘flashbacks’ invadem de maneira confusa a narrativa. Além disso, o vigor dos atos sobrevivenciais de Kelliane contrastam diretamente com o aspecto permanentemente ébrio das atitudes da Fabíola, que chega a abandonar, irritada, uma entrevista ao vivo, num programa telejornalístico de caráter duvidoso. Tais efeitos são propositais, em razão de reforçarem o elã feminista da trama, que deixa claro o seu repúdio aos privilégios concedidos aos ditos “cidadãos de bem” (na acepção mais hipócrita da expressão). O resultado é disfuncional, mas a tentativa é amplamente válida: em seus grunhidos de tesão e fúria, é um filme espontaneamente militante, portanto.

Na terceira parte do filme, fica-se evidente o quanto o roteiro coloca-se ao lado da protagonista, ainda que não consiga salvá-la de um destino trágico, conforme ocorre na realidade que o inspirou. Inclusive, a película conta com a última participação de Roberta Gretchen, falecida em 2020, que protagonizou o ótimo curta-metragem “Vaca Profana” (2017), também realizado por René Guerra. E esse é um dos variegados píncaros emocionais deste filme, que conta com uma trilha musical muito inspirada, que mistura desde canções famosas de Edson Gomes e Rosemary até uma versão inaudita do clássico “Psycho Killer”, da banda estadunidense Talking Heads. E é muito sintomático que “Serial Kelly” esteja estreando agora: é o tipo de filme que precisa voltar a ser produzido no Brasil, coroando a derrota do bolsonarismo nas eleições. Que ressurja um cinema brasileiro que não tenha medo ou nojo do sexo. Nem da revolta das mulheres!
Trailer


Ficha Técnica
  • Título original e ano: Serial Kelly, 2022. Direção: René Guerra. Roteiro: Rene Guerra e Marcelo Caetano. Elenco: Gaby Amarantos, Paula Cohen, Igor de Araújo, Marcio Fecher, Thomas Aquino e Thardelly Lima. Gênero: Comédia. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Pedro Urano. Edição: Eva Randolph. Direção de Arte: Karen Araújo. Edição de Som: Bernardo Uzeda. Coordenador de Finalização: Elaine Azevedo e Silva e Juca Diaz. Distribuição: Vitrine Filmes. Duração: 80 minutos.

Com distribuição da Vitrine Filmes, a produção tem estréia prevista na cidades de: Rio Branco (AC), Maceió (AL), Manaus (AM), Sobral (CE), Brasília (DF), Vitória (ES), Goiânia (GO), Belém (PA), Parauapebas (PA), Santarém (PA), Jaboatão dos Guararapes (PE), Recife (PE), Curitiba (PR), Rio de Janeiro (RJ), Porto Alegre (RS), Aracaju (SE), São Paulo (SP) e Palmas (TO).

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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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