Com Amor e Fúria, de Claire Denis


“Quando a gente ama alguém e deixa de amar, o amor não some completamente”!
Um dos aspectos mais interessantes das obras realizadas por ‘auteurs’ é o reaproveitamento hipercodificado de elementos utilizados em trabalhos anteriores. Neste sentido, ao optar pelo compartilhamento de uma conturbada história de amor, a diretora Claire Denis não abandona as abordagens políticas que a caracterizam. Vide as aparições dos acadêmicos Hind Darwich e Lilian Thuram como entrevistados no programa radiofônico apresentado pela protagonista deste filme, vivida por Juliette Binoche.

Resgatando aspectos de colaborações prévias entre a diretora e seu trio central de atores, em “Com Amor e Fúria” (2022), reencontramos a agressividade carente de uma personagem vivida por Juliette Binoche [mais ou menos, como vimos em “Deixe a Luz do Sol Entrar” (2017) e “High Life – Uma Nova Vida”)]. Interpretando a radialista Sara, ela percebe-se dividida entre dois amores perturbadoramente relacionados, o aparentemente pacato Jean [que conta com a mesma instabilidade afetiva que Vincent Lindon demonstrou em “Bastardos” (2013)] e o sorrateiro François [que traz à tona um cariz misterioso similar ao que Grégoire Colin impôs em “Bom Trabalho” (1999)]. Para quem é acostumado ao estilo da diretora, será gratificante reencontrar estas reminiscências. 


Por outro lado, este é um roteiro que tergiversa em excesso: muitas vezes, os diálogos soam declamatórios, de modo que os personagens recapitulam demoradamente eventos marcantes de suas vidas (o momento em que se encontraram pela primeira vez, o fato de um deles ter ido para a prisão, os comportamentos problemáticos do filho de Jean), de maneira um tanto artificial. Isso também é sentido nas expressões adotadas por alguns deles, como quando Sara reclama que, ao ser interrompida, precisa “recuperar o fôlego das frases” ou quando Jean grita “posso não ter um cartão de crédito, mas tenho uma vida”. Não são situações dramaturgicamente inverossímeis, mas aquém do talento demonstrado pela cineasta – que também é co-roteirista – na concepção dos embates emocionais entre os seus protagonistas. 


Trailer


Ficha Técnica
  • Título original e ano: Avec amour et acharnement, 2022. Direção: Claire Denis. Roteiro: Christine Angot e Claire Denis - baseado ''Un Tornant de la Vie'' de Christine Angot. Elenco: Juliette Binoche, Vincent Lindon, Grégoire Colin, Buller Ogier, Issa Perica, Alice Houri, Mati Diop, Bruno Podalydès, Lola Créton, Hana Magimel. Gênero: Romance, Drama. Nacionalidade: França. Trilha Sonora Original: Stuart Staples e Tindersticks. Fotografia: Eric Gautier. Edição: Sandie Bompar, Guy Lecorne, Emmanuelle Pencalet. Figurino: Judy Shrewsbudy. Distribuição: Synapse. Duração: 01h57min.

Outra colaboração recorrente na filmografia da diretora é com a banda britânica Tindersticks, que compôs a trilha musical de diversos de seus filmes. Aqui, o acompanhamento é quase onipresente, de modo que chama particularmente a nossa atenção as modificações contínuas de tom: às vezes, numa mesma sequência, a música passa de dramática para tensa, logo rendendo-se à candura romântica, visto que os sentimentos contraditórios são anunciados desde o título. 


A filha de Juliette Binoche, Hana Magimel, faz sua estreia nas telas, mas não ganha destaque

Se os traumas relacionais são acentuados a partir dos encontros frequentes de Sara com o seu ex-namorado François, é estranho que Jean insista em levar uma colaboração profissional entre os dois à frente, mesmo que saiba que isso perturba cada vez mais a sua esposa. Por motivos óbvios, isso desencadeará crises de ciúmes que tornar-se-ão cada vez mais violentas, e desagradavelmente previsíveis em suas conseqüências. A impressão dominante é que a diretora não parece confiar suficientemente nesse entrecho, de modo que insere as intervenções recorrentes de Nelly, a mãe de Jean (Bulle Ogier), que não sabe mais como lidar com a rebeldia adolescente de Marcus (Issa Perica). O diálogo entre Jean e seu filho sobre o modo como o garoto, que é negro, assimilou um discurso socialmente reducionista sobre racismo é um dos melhores momentos do filme, coligando-se discursivamente com as falas militantes dos supracitados entrevistados de Sara. 

Ainda que seja um dos filmes menos empolgantes da cineasta, é certo que os seus admiradores encontrarão muitos pontos válidos para debate, em razão de ela permanecer hábil na manutenção das pontas soltas tramáticas, que permanecem abertas de maneira intencional. Vide o que ocorre no desfecho e as imagens que aparecem durante os créditos finais. Mas a indefinição de questões genéricas, que surge como aspecto proposital (conforme detectamos na observação sobre a trilha musical) e como chamariz noutras obras, perde progressivamente o seu impacto, até desembocar numa crise marital demarcada por argumentos aburguesados. Resta a lembrança incandescente da voz da libanesa Yasmine Hamdan, no breve instante em que “Beirut” estronda na trilha sonora. Conhecendo as obsessões da diretora, sabemos que isso não é gratuito!

Com Amor e Fúria é baseado no livro, ainda inédito no Brasil, ''Un Tornant de la Vie'' de Christine Angot. Angot assina o roteiro ao lado de Denis.


03 de Novembro Nos Cinemas

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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