Rabia – As Esposas do Estado Islâmico, de Mareike Engelhardt

 
“A única prática (sexual) permitida é aquela que gera filhos. Qualquer outra será punida!”

Por ser baseado em relatos verídicos de mulheres sobreviventes das situações apresentadas, o roteiro deste filme – co-escrito pela diretora, estreante em longas-metragens – não titubeia: refere-se, num letreiro inicial, aos recrutadores nupciais como terroristas e descreve o “Estado Islâmico” (devidamente aspeado) da mesma forma. A trama inicia-se em 2014, quando duas amigas francesas, Jessica (Megan Northam) e Laïla (Natacha Krief), abandonam os seus respectivos cotidianos e migram para a cidade de Raqqa, na Síria, onde pretendem se casar com guerrilheiros locais. A primeira delas será rebatizada com o nome que intitula este filme, podendo significar tanto “fúria” quanto “primavera”. E ela fará jus a este significado duplicado… 

Jessica tencionava formar-se em Enfermagem, quando teve acesso ao convite para ser noiva de um soldado sírio. Frustrada que ela estava tanto com o seu trabalho como cuidadora de idosos quanto pelo desdém de seu pai em relação ao seus anseios, ela aprende a falar árabe e larga tudo na França. Porém, o que encontrará na Síria não será idílico como ela imaginava. Inclusive, porque Laïla casar-se-á antes dela, o que causará uma ruptura na relação entre as duas amigas, já que seus planos conjuntos são rapidamente malogrados. 

Confinada, junto a várias mulheres, num local de espera, no qual as jovens são apresentadas e ofertadas aos guerrilheiros, Jessica entrará em conflito com a autoridade de Madame (Lubna Azabal, esplêndida, como de praxe), a controladora desta rede de proxenetismo. Ao ser quase estuprada por um pretendente (Andranic Manet), Jessica é severamente punida, tendo os seus cabelos cortados e sendo bastante chicoteada. O fato de ela não ser virgem, conforme declarou nas entrevistas de seleção, provoca o acirramento dos castigos que recebe, mas, sob extrema tensão psicológica, Jessica denuncia a corrupção das funcionárias de Madame, tornando-se, repentinamente a sua cúmplice preferida. 

Crédito de Imagens: Films Grand Huit, Starhaus Filmproduktion, Kwassa Films, Arte France Cinéma, Radio Télévision Belge Francophone (RTBF) - Pandora Filmes, divulgação.
Antes de "Rabia - As Esposas do Estado Islâmico Mareike Engelhardt dirigiu seis curtas e uma série de tevê. Tem em seu currículo títulos como Assistente de Direção e Roteirista


Em encontros que oscilam entre o desafio e a necessidade de submissão, Jessica e Madame assentem numa colaboração: a jovem francesa, que aceita ser chamada como Rabia, demonstra-se crente nos valores muçulmanos que foi obrigada a recitar, enquanto Madame consente que ela lhe aplique injeções de morfina, a fim de aplacar as dores provocadas por uma doença – possivelmente, câncer. Quando Jessica/Rabia pergunta do que se trata, Madame responde com uma frase típica dos fundamentalistas religiosos: “a dor significa que a pessoa é amada por Alá”!

Trailer



Ficha Técnica

Título original e ano: Rabia, 2024.Direção: Mareike Engelhardt. Roteiro: Mareike Engelhardt e Samuel Doux. Elenco: Megan Northam, Lubna Azabal, Natacha Krief, Lena Lauzemis, Maria Wördemann, Klara Wördemann, Andranic Manet. Nacionaldiade: França. Gênero: Drama. Trilha Sonora Original: David Chalmin. Figurinista: Catherine Cosme Fotografia: Agnès Godard. Direção de Arte: Qais Masadeh. Edição: Mathile Van de Moortel. Produção: Films Grand Huit, Starhaus Filmproduktion, Kwassa Films, Arte France Cinéma, Radio Télévision Belge Francophone (RTBF). Distribuição no Brasil: Pandora Filmes. Duração: 95 minutos. Classificação indicativa: 16 anos.


Em seus noventa e quatro minutos de duração, este filme progride de maneira desesperançosa e aflitiva: a fim de que as mulheres consigam sobreviver àquele ambiente crudelíssimo – por conta da concordância de outras mulheres em relação à misoginia supostamente justificada por deturpações de versos do Alcorão –, elas passam a desconfiar umas das outras, tratando-se com brutalidade e anuindo em converter-se em mercadorias de troca. Até que, alguns anos depois, Jessica reencontra Laïla, com uma filha pequena, marcada por inúmeras chagas no corpo e castigada por tentar fugir de seu marido, em ao menos quatro oportunidades. Seria a oportunidade para a protagonista recuperar a sua identidade?

Os atos finais do filme tornam-se ainda mais violentos, pois ouvimos continuamente os sons dos bombardeios que atravessam a cidade e testemunhamos o ambiente de destruição nas ruas. Evocando elementos que conhecemos noutros longas sobre o tema – com destaque para “A Noiva” (2022, de Sérgio Tréfaut – comentando aqui) e o excelente documentário “As 4 Filhas de Olfa” (2023, de Kaouther Ben Hania) –, “Rabia – As Esposas do Estado Islâmico” (2024) chama a atenção para a complexidade na abordagem do jihadismo, pela perspectiva feminina, visto que as agressões extremas a que estas mulheres são submetidas estão atreladas ao convencimento de que isto seria a vontade de Alá. O desfecho é devastador naquilo que expõe, quando Jessica caminha com um bebê nos braços, diante de um deserto que parece infindável… 

 

Em termos cinematográficos, a diretora cercou-se de um elenco competente e de profissionais predominantemente femininas, na equipe técnica (destaque para a fotografia da célebre Agnès Godard), de modo que o filme é exitoso ao fazer com que compreendamos as mudanças comportamentais de Jessica, ainda inconseqüente e precipitada, no fulgor de seus dezenove anos de idade e sob o peso de diversos traumas acumulados. Numa decisão mui corajosa, o roteiro não torna a vilã Madame desprovida de empatia, visto que não sabemos efetivamente o que ela sofreu, até se tornar uma mercenária negociante de mulheres. Em razão da tomada de partido que o enredo assume, este filme possui contribuições mui válidas em seu teor denuncista, somando-se de maneira vigorosa aos longas-metragens anteriormente citados, que abordam a mesma conjuntura. É impossível sair emocionalmente incólume desta sessão! 

HOJE NOS CINEMAS

Escrito por Wesley Pereira de Castro

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