O multiartista Ney Matogrosso, talvez o maior showman brasileiro vivo, ganha cinebiografia belíssima contando um pouco de suas muitas fases na indústria musical, além de momentos pessoais como o relacionamento com o cantor e músico Cazuza. Homem com H, de Esmir Filho (Alguma Coisa Assim, 2017) esbanja acertos em performances e denota com poesia e metáforas significativas momentos sérios como a chegada da AIDS a vida da população LGBTQ, entre os anos 80 e 90. Estrelado por Jesuíta Barbosa, que vive magistralmente o interprete mais distinto da música popular brasileira, a produção ainda conta com a presença de Jullio Reis como o ex-membro do Barão Vermelho, Bruno Montaleone dá vida ao ex marido de Ney, Marco de Maria, Rômulo Braga e Hermila Guedes vivem os pais do cantor, Antônio e Beita. A primeira banda de Ney, os ''Secos & Molhados'', formada com João Ricardo e Gerson é interpretada por Mauro Soares e Jeff Lyrio. O filme ainda tem participação especialíssima da apresentadora Sarah Oliveira, irmã do diretor e que vira e mexe faz programas especiais sobre Ney. A ex-VJ aparece como uma jornalista em cena do longa. A cantora Céu também integra o elenco e vive uma cantora dos anos 60 que claramente dá ao homenageado inspirações artísticas.
A obra não entrega uma narrativa linear e logo que a tela se abre vemos cenas do pequeno Ney de Souza Pereira perambulando pela mata. Em instantes, take dos pais do garoto o assistindo apresentar ''O Homem de Neanderthal'' entram em destaque. Dali parte-se para as experiências opressoras de Antônio com o filho ainda muito criança. O que não se vê acontecer com os irmãos do garoto. Militar, rígido e um pai pouco preocupado em dar afeto ao filho, cobra dele postura de gente normal e quase sempre tenta constranger as veias artísticas ou andróginas de Ney. Anos se passam e cansado de humilhações, o garoto decide ir para o exército e assim ficar longe de casa, não trazendo sofrimento a mãe pelas brigas constantes com o progenitor. Contudo, após o alistamento, segue seu rumo, ainda que sem qualquer tostão furado no bolso. Os anos de ditadura, entre as décadas de 60 e 70, não fazem o jovem deixar de ser quem é e este se muda para Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo sempre buscando se desenvolver. Na capital, trabalha no Hospital de Base e estuda teatro. Vive um amor abusivo e se livra para ser mais e deixar de ser menos. Por São Paulo e Rio encontra sua turma da arte. Costura, faz trabalhos artísticos e aos poucos vai chegando a hora de encontrar João Ricardo e Gerson. Com quem monta uma das bandas precursoras de sons progressivos no Brasil e com um estilo visual que até hoje confunde mundialmente os fãs do Glam Rock pela semelhança com a banda Kiss, que surgiu na mesma época. Como um ser muito sexual, sua vivacidade é nítida e por onde passa conquista não só homens, como mulheres - o que o filme deixa muito claro é sua bissexualidade.
Os anos em que Ney passa duro e sem ter dinheiro, não o fazem desistir de enveredar pelo mundo da arte. Centrado e com muito bom gosto, se dedica ao teatro e ao canto e sua voz vai chamando a atenção de quem o cerca. Quando finalmente estoura com o Secos & Molhados, ele joga para fora toda sua sagacidade teatral com o amparo de uma voz diferenciada e muita atitude de palco. O filme demarca os anos, os lugares em que o protagonista vive e vai espelhando ao espectador como sua jornada se deu aos poucos e compassada até o estrelado. Tanto no seu grupo, como em carreira solo, enfrentou preconceito, censura e o destaque para o dilema mais doloroso na vida do artista vai para a relação com o pai, que nunca perante Ney o reconhecia como alguém e sempre trazia dor e confronto. Nos últimos anos de vida, contudo, há certa fase amena. A mãe é sempre vista como o carinho e afeto que o cantor teve dentro da família. Além de todo apoio e admiração pela carreira musical.
Crédito de Imagens: Paris Entretenimento e Paris Filmes - Divulgação
Com um texto redondinho, a película emociona inúmeras vezes e faz uma linda e justa homenagem a Ney Matogrosso
Jesuíta Barbosa chegou a emagrecer 12 quilos para viver Ney e entrega fisicalidade e um corpo muito similar, pois apesar do cantor ser alto e magro, sempre possuiu músculos e teve muito energia durante os shows, o que Barbosa consegue refletir com sua atuação e caracterizações com muita precisão. Os olhares, trejeitos, rebolados, todos vem com ele e há uma certa incorporação da figura mítica que Ney é no ator. As cenas de sexo vem em grande quantidade no filme, mas não são vulgares e ganham beleza de inúmeras formas. Há cenas mais orgásticas de um passado juvenil e de experimentação e também de amor como quando Ney encontra Cazuza ou seu marido, Marco. Infelizmente, ambos faleceram vítimas da AIDS e quando o assunto chega ao filme vem como uma cobra que adentra o quarto dos personagens enquanto dormem. Ney enfrenta a dor de ver a doença levar seus amigos, seus amores e não se deixa abater. Insere o que pode em lindas interpretações, agora mais maduro e de cara limpa, exibindo sua força e coragem.
As performances musicais, a clássica foto da capa do primeiro disco dos Secos & Molhados, a era inicial da carreira solo são apresentadas com maestria por Barbosa e editadas com cortes quase idênticos ao original.
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e ano: Homem com H, 2025. Direção: Esmir Filho. Roteiro: Esmir Filho. Elenco: Jesuíta Barbosa, Jullio Reis, Bruno Montaleone, Rômulo Braga, Hermila Guedes, Mauro Soares, Jeff Lyrio, Danilo Grangheia, Augusto Trainotti, Bela Leindecker, Caroline Abras, Regina Chaves. Participações especiais: Céu e Sarah Oliveira. Gênero: Música, Biografia, Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Azul Serra. Direção de Arte: Thales Junqueira. 1º Assistente de Direção: Kity Féo. Figurino: Gabriella Marra. Caracterização: Martin Trujillo. Montagem: Germano de Oliveira. Som Direto: Ana Penna. Edição de Som: Martin Griganaschi. Mixagem: Armando Torres Jr, ABC. Supervisão Musical e Música original: Amabis. Produção de Elenco: Anna Luiza Paes de Almeida. Direção de Produção: Karla Amaral. Produção: Paris Entretenimento. Produção: Márcio Fraccaroli, André Fraccaroli, Veronica Stumpf. Produtor Associado: Rodrigo Castellar. Produção Executiva: Rodrigo Castellar, Mariana Marcondes. Produtores Associados: Rodrigo Castellar, Adrien Muselet, Esmir Filho. Distribuição: Paris Filmes. Coprodução: Claro. Apoio: Riofilme. Classificação: 16 anos. Duração: 130 minutos.
Ney tem uma jornada na tela com recortes muito potentes. Em certo momento, ele é levado a um jantar pelos colegas de banda e o empresário para ser ''podado'' e não ser mais o Ney que se pinta, dança e rebola e se nega a seguir tais comandos. Quando tem conversas duras com o pai, o espectador também sente o quão forte o jovem Ney teve de ser por sua vida. Com os amores, sempre tentando se livrar de relações possessivas ou lidando com situações inusitadas como a que precisa expulsar Cazuza alucinando em seu apartamento, onde claramente estava cheio de drogas. Ele se mantém firme e se recusa a ter uma vida conforme os outros, sua arte mostra política, resistência e diferencial desde sempre e sem sequer uma palavra que exclame abertamente isto. Assim, o filme chega a lugares muito incríveis por andar em trilhos de grandeza e poesia.
Crédito de Imagens: Fotos encontradas no livro ''Vira-Lata de Raça, de Ney Matogrosso e Ramon Nunes Mello - Divulgação
O encontro do trio ''Secos & Molhados'' revela como nem os colegas de banda estavam preparados para a genialidade de Ney Matogrosso.
Apesar de diversas biografias literárias sobre o cantor, a única que tem seu dedo saiu em 2018, assinada por ele e Ramon Nunes Mello com o título de ''Vira-Lata de Raça'' (Editora Tordesilhas), e somente nela é possível saber mais sobre a trajetória do cantor por sua própria visão. De toda forma, o livro não é adaptado, mas serve como material de pesquisa ao diretor e roteirista Esmir Filho e equipe. Esmir já dirigiu inúmeros videoclipes para artistas como Marina Lima e Céu, além de programas de tevê, curtas e séries. Teve, talvez, seu primeiro contato trabalhando diretamente com Ney quando o artista foi ao programa ''Calada Noite'' (2015-2016), apresentado por Sarah Oliveira. O show do canal de TV a cabo GNT trazia celebridades e famosos que possuíam uma relações diferente com a noite, os ditos ''notívagos''. Dirigiu Andrea Beltrão em ''Verlust'' (2020) e seu filme ''Alguma Coisa Assim'' (2017) chegou a participar do Festival de Cinema de Guadalajara recebendo indicação a prêmios. Sua condução em Homem com H mostra amadurecimento e uma ótima percepção do artista, sem ferir ou trazer recortes desajustados. Esmir e toda equipe entregam um dos filmes brasileiros que deve integrar, em breve, a casa dos melhores.
Avaliação: Quatro pássaros livres (4/5).
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